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Peter Pan e Wendy e a tal da "lacração"

Por Luciano Felizardo 11/05/2023 20h08
Por Luciano Felizardo 11/05/2023 20h08
Peter Pan e Wendy e a tal da 'lacração'
Cena do filme "Peter Pan e Wendy" - Foto: Imagem do Pinterest

Você assistiu o novo filme do Peter Pan da Disney, o "Peter Pan e Wendy"? Eu assisti, e posso dizer que... É. Ok.

Tudo no filme é basicamente isso: é... Ok. É tudo médio. Digo, se você chega em casa cansado do trabalho, quer assistir algo pra não pensar, algo que nem precise ser apreciado, que nem precise ser bom mesmo, ou se você quer apresentar essa história pros seus filhos, sobrinhos ou netos... Vá em frente. Assista. Chame eles pra assistir junto. Só não espere nada demais.

Pra mim, porém, que assisto coisas lendo as entrelinhas, não foi uma experiência de todo esquecível. Teve um elemento que me marcou - e adianto que foi negativamente.

Não, não foi o cgi ruim, nem a edição ruim, nem o ritmo ruim, nem a fotografia (depois dos 20 primeiros minutos) ruim, nem as atuações ruins - em especial a do Alexander Molony (Peter) -, nem mesmo a história pouco cativante, o que me chamou a atenção foi a famigerada "lacração" kkkkkkkk 

Achou que nunca ia me ver falando isso? De certa forma achou certo. É bait, e é preciso ser MUITO ingênuo pra achar que o "problema" do filme é esse.

Dos problemas técnicos eu nem quero falar mais, você não precisa da crítica pra percebê-los. Eu quero falar mesmo é da tal da "lacração".

É quase impossível procurar crítica sobre qualquer produto de cultura pop sem se deparar com um bando de marmanjos mal-crescidos que acham que simplesmente MOSTRAR pessoas que não estejam completamente enquadradas nos padrões sociais vigentes (hetero/cis/branco/cristão) é um atentado à "família" - ou seja lá qual for o argumento sem lógica. Nenhuma dessas críticas se fundamenta em nada, é claro.

Além de ter que ser muito, mas muito ingênuo pra pensar como eles, é preciso ser completamente acrítico pra não perceber o real uso que empresas como a Disney fazem dessas situações. Esse hate é esperado - talvez até calculado -, e é esperado também o movimento contrário, o das pessoas que acham que filmes pseudorrepresentativos como esse têm que ser abraçados para os barbudos chorosos que moram nos porões das mães pararem de dizer que "quem lacra não lucra". 

No fim, o mínimo que se tira disso é propaganda gratuita para essas produções tão pobres artisticamente. Na melhor das hipóteses, a empresa lucra com o ódio e com a tentativa de combate ao ódio, e de quebra vai se limpando aos poucos de seu passado duvidoso - procure sobre as atitudes corporativas e as obras antigas da Disney pra saber do que eu estou falando.

Acontece que esse passado hora ou outra dá as caras - mesmo que num aparente "descuido". No caso de Peter Pan e Wendy, bastaram alguns frames para que essas "ideias antigas" viessem à tona.

A cena da qual eu falo é a seguinte: uma das amigas do Peter, a Tiger Lily, sente que ele precisa de sua ajuda, então sai de perto de seus aparentes parentes, ou seja, de um agrupamento de indígenas, e cavalga até o Peter.

Não entendeu? Na Terra do Nunca, um lugar onde existem fadas, sereias, meninos que voam, existem indígenas também.

Ainda não entendeu? Na terra onde as pessoas nunca amadurecem - e os adultos que vemos lá, os piratas, são absolutamente infantis -, temos pessoas indígenas adultas.

Ainda não entendeu? Essa etnia está representada ali como se vivesse uma eterna "infância". Pra fechar com chave de lixo, no fim do filme a Wendy volta pra Inglaterra e nos diz que talvez "crescer" seja mesmo a melhor opção.

A péssima herança colonial disso é gritante. O que está escrito nas entrelinhas é que sim, a colonização foi o melhor que podia acontecer, que sim, era necessário o processo "civilizatório" daqueles povos, que sim, a sociedade europeia moderna é a fase "adulta" da humanidade. 

E eu sei que a Tiger Lily não foi criada pra esse filme, é uma personagem das antigas, mas se levamos essa imagem para um tempo onde debates como esse eram ainda mais raros, a situação só fica pior. Pra uma empresa que agora tenta se vender como antirracista, deveria haver um cuidado para amenizar coisas como essa... isso é, num caso onde toda a questão não tivesse como pano de fundo um pseudoprogressismo tão lucrativo.

E aí, no fim, chega a ser risível ver os ultradireitistas delirantes chorando na internet, vociferando que o problema ideológico de obras como essa é a "lacração" kkkkkkk

Eu volto a dizer: ainda não estamos debatendo as colonizações como deveríamos. Quando falamos de colonização, estamos falando de séculos de violência, de genocídio, de humilhação e de construção de sociedades estruturalmente racistas. O protagonista do filme tem a pele escura? Ótimo. Obrigado. Mas ainda não é isso que queremos. Isso não é o bastante, nem de longe.

Luciano Felizardo

Luciano é escritor e sua cabeça gira em torno disso. Nesse espaço, vai falar sobre obras de arte (filmes, livros, músicas, etc) e as reflexões que teve a partir delas. Além de, vez e outra, tentar simplificar e trazer para o nosso cotidiano alguns conceitos de filosofia, política e psicologia - área na qual vem se graduando pela Ufal.
Suas obras podem ser adquiridas no site da Editora Ipê Amarelo ou entrando em contato com ele através do Instagram (@vezeoutrapoesia).

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