Blogs

Belchior: o herói do absurdo

Por Luciano Felizardo 20/04/2023 20h08
Por Luciano Felizardo 20/04/2023 20h08
Belchior: o herói do absurdo
Belchior fotografado - Foto: Imagem do Pinterest

Eu estive lendo o Mito do Sísifo ultimamente. Talvez seja a obra-prima do Albert Camus - jornalista, filósofo e escritor, ganhador do Nobel de Literatura.

É simplesmente incrível. Camus é um dos meus criadores preferidos. "Sim, Luciano, mas o texto é só pra rasgar ceda pra ele?" Eu diria que não. Diria até que o texto é sobre Belchior. O que tem a ver?

Bem... Belchior parece ser o herói ideal da teoria Camusiana. Confuso? Talvez Anacrônico? Provável. "Absurdo", eu diria. "É do Belchior mesmo que você tá falando? O cantor? O Antônio Carlos Belchior, do Ceará?" É dele mesmo.

Acontece que o Camus foi um filósofo que pode ser enquadrado tanto no existencialismo quanto no absurdismo. Essa última linha filosófica foi ele quem criou, aliás.

[O existencialismo é um assunto longo, e pouco simples de explicar, mas que eu amo. Acho que nesse ensaio não cabe, mas posso escrever um só pra ele.]

É sobre o Absurdo que eu queria falar. Albert Camus vem de um mundo difícil, destroçado. Perdeu o pai logo cedo e viu duas grandes guerras. Estudou muito, questionou tudo, e ao final, concluiu que nada fazia sentido. Nada tinha um "porquê", uma motivação metafísica dada a priori. Ele chegou à conclusão de que o mundo é absurdo. Digo... Não o mundo em si, mas a relação do ser humano consciente com esse mundo.

Quando nós nos damos conta do vazio dessa vida cotidiana, queremos explicá-la para nós mesmos, mas cedo ou tarde percebemos que não temos meios para isso. Camus cita até alguns filósofos que se contentaram com isso, ou que, por não se contentarem, buscaram respostas num pós-vida ou na divindade em que acreditavam.

Camus não se contentava. Continuava querendo respostas. Se mantinha em constante revolta. Foi aí que ele descreveu o herói absurdo.

Esse herói é o indivíduo que luta com paixão contra a própria tragédia, que é a limitação. Despertamos, e ao despertarmos, queremos entender o mundo, mas encontramos a limitação nos meios, e até na própria morte, que é inexplicável. Ninguém nunca morreu e voltou pra contar. Ninguém nunca soube como era morrer. O herói absurdo sabe que não pode encontrar as respostas que quer, mesmo assim, segue procurando. 

E que se entenda: "procurar as respostas" não é simplesmente refletir, é também viver. Experimentar o mundo. Tentar entendê-lo na prática.

Ele dá o exemplo do conquistador/aventureiro, que sabendo que vai morrer, não se conforma com o que viu e quer ver o resto do mundo antes da morte, mesmo que seu tempo limitado o impeça de ver tudo, e mesmo que, vendo tudo, morra do mesmo jeito e não tire nenhum proveito posterior disso. O homem morre, mas morre com sede de experimentar a vida.

Não venha me dizer que não era do Belchior que Camus estava falando. Vou ser mais preciso: do Belchior em Coração Selvagem.

Olha essa letra: "meu bem, o mundo inteira está naquela estrada ali em frente/ beba um refrigerante, coma um cachorro quente/ sim, já é outra viagem/ e o meu coração selvagem tem essa pressa de viver."

Ele tem fome do mundo. Ele quer ver tudo, e quer ver logo. E ainda: ele quer ver minuciosamente, prestando atenção até no lanche que faz na rodoviária antes de pegar a estrada. Isso também é da filosofia de Camus. Belchior nessa música é apaixonado, e quer viver isso com ardor: "mas quando você me amar/ me abrace e me beije bem devagar/ que é para eu ter tempo/ tempo de me apaixonar/ tempo pra ouvir o rádio no carro/ tempo para a turma do outro bairro ver e saber que eu te amo."

O eu-lírico está ciente de sua limitação: "meu bem, mas quando a vida nos violentar [...] Falaremos para a vida 'vida, pisa devagar, meu coração, cuidado, é frágil'. "Sabe ainda que vai morrer: "talvez eu morra jovem/ em alguma curva do caminho." Mas não me parece que está satisfeito com isso. Seu coração selvagem tem essa pressa de viver. Ele quer experimentar e saber mais do porquê das coisas: "esse meu jeito de deixar sempre de lado a certeza/ e buscar tudo de novo com paixão." Mas faz uma ode à aventura e à conquista: "vem correr perigo, vem viver comigo."

E sim, é brincadeira quando digo que Camus falou sobre Belchior. Talvez Bel é que tenha aprendido com Camus. E provavelmente nós temos coisas a aprender com eles também.

Luciano Felizardo

Luciano é escritor e sua cabeça gira em torno disso. Nesse espaço, vai falar sobre obras de arte (filmes, livros, músicas, etc) e as reflexões que teve a partir delas. Além de, vez e outra, tentar simplificar e trazer para o nosso cotidiano alguns conceitos de filosofia, política e psicologia - área na qual vem se graduando pela Ufal.
Suas obras podem ser adquiridas no site da Editora Ipê Amarelo ou entrando em contato com ele através do Instagram (@vezeoutrapoesia).

Ver todos os posts