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Crônica: A mulher profissional e a maternidade solo, um dia banal.
Dia 28 de março de 2023, acordei, consultei as horas no celular, eram 5h da manhã. Ótimo, posso ficar na cama por mais 30 minutos. Verifiquei como de costume o filhote dormindo, ajustei seu cobertor com carinho. Encostei a cabeça no travesseiro mais uma vez e fechei os olhos, dava para descansar mais um pouco, iria esperar o despertador alarmar. Afinal, no dia anterior, segunda-feira, nossa rotina foi corrida. Foi dia de duas terapias do meu filho. De manhã ele vai para a escola, horário que aproveito para trabalhar com mais tranquilidade, mas como temos compromisso a tarde, é dia de pontualmente as 11h30, me deslocar para a cidade vizinha para buscá-lo na escola, almoçarmos juntos e em seguida o levo para o encontro da primeira profissional, que inicia as 13h00min e na sequência, a segunda, às 14h20min. Enquanto aguardo na espera, sou mimada pela secretária da terapeuta que me traz um café expresso, chega a ser um alento. Como estou no horário de trabalho, é o pequeno entrando na sala e eu abrindo a bolsa e retirando o computador para com o acesso local da internet reiniciar os sistemas de trabalho para dar continuidade ao que comecei de manhã. Abro o aplicativo de mensagens, vários alertas de solicitações do trabalho. É preciso dar atenção e responder imediatamente. Passado o tempo da terapia, sou chamada à sala para receber o feedback. Guardo rapidamente tudo que tenho nas mãos. Escuto com atenção. Ufa! Tudo bem, e seguindo. É o pensamento que vem a mente. Meu pequeno saltitante e contente como sempre. Descemos para o estacionamento, é nosso horário de retornar para casa. No caminho, aproveito para conversar, saber como foi seu dia, se gostou do lanche da escola e tudo que aconteceu. Chegamos em casa. Acontece o de sempre, filho tira a farda! Está com fome? Preparo seu lanche, vejo se está tudo bem. Ele logo inicia suas atividades que denomina “ficar de boa”. Respiro, olho para o relógio, são 16h15min. Preciso dar continuidade as demandas do trabalho, que ainda é um benefício por ser remoto. Vou para o meu quarto, onde mantenho uma pequena estrutura de escritório particular. Com a atenção dividida no filhote que está também em seu quarto curtindo seu mundo Geek. O tempo passou, são quase 18h00min. Hora de parar, precisamos jantar. Vou para a cozinha, preparar algo gostoso para a gente comer. Enquanto isso, início mais uma vez as recomendações e solicitações ao pequeno. Filho, você precisar tomar banho! Vou já mãe. Ele responde. Mas já são seis horas! Resistente, ele segue para o banheiro. Dois amiguinhos do meu pequeno chamaram na porta e foram brincar um pouco, adoro quando eles vêm. Jantamos, fazemos as tarefas da escola, arrumamos a bolsa para o dia seguinte. Finalmente ficamos de boa e nesse dia dormimos um pouco mais tarde, quase as 22h00min. Tarde, para quem precisa estar acordado as 5h30min. Pois é, mas no dia 28, terça-feira, voltei a dormir, não escutei o despertador, quando acordei, eram 6h30min, a van escolar já havia passado. Meu pequeno dormindo tranquilamente, saltei da cama. O pensamento: se eu o arrumar agora, dará tempo levá-lo a escola na cidade vizinha. Respirei, mas se o levar agora de manhã, vou precisar voltar e depois precisaremos viajar novamente no final da tarde para a terapia da terça-feira que se inicia as 16h50min. Não vou dar contar! Ainda tenho pendências do trabalho do dia anterior. Procurei afastar a sensação de urgência. Dei um beijo no meu filho ainda dormindo e sussurrei. Hoje você irá faltar a escola. Não havia a quem solicitarmos ajudar para dividir os compromissos. Fiquei em casa, dei continuidade a nossa rotina, com grande sentimento de culpa e incapacidade. Afinal, fui eu que adormeci e deixei de cuidar daquilo que era básico, encaminhar meu pequeno para a escola. Na terapia da terça, ao final, a terapeuta me chamou e perguntou, por que ele não foi para a escola hoje? Nó no estomago, mas uma resposta sincera.
O texto retrata com transparência um dia da mãe solo “privilegiada”. É preciso reconhecer, pois sei que a realidade das milhares de mães solo brasileiras é muito mais difícil. Por mais que a rotina seja puxada e a sensação de incompetência esteja presente quase que o tempo todo, existiu e existe para a mulher da crônica uma estrutura que permite a segurança de uma renda decorrente de um emprego seguro, existe a possibilidade da criança em desenvolvimento ter os tratamentos adequados, existe um teto, um transporte. Na casa ela não sofre violência doméstica. Mas sobretudo, é a realidade de uma maternidade solo. No meu caso, foi uma opção, decidi encarar. Fiz a escolha entre outras possibilidades que poderiam me levar para uma situação mais complicada e pude fazer a opção. Tive esse "poder/oportunidade", nem sempre possível para outras mulheres.
Nesse contexto, diante da minha realidade, nasce uma preocupação com as outras “irmãs”, com as outras mulheres. Como elas estão? Quantas vezes precisam passar por privações? Baixar a cabeça, sofrer humilhações, serem violentadas. Estigmatizadas. Guardar sua capacidade intelectual ou ter que escolher entre ter uma vida profissional e pessoal. Se eu na minha realidade “privilegiada” me sinto culpada por não conseguir dar conta, como elas estão? Será que conseguimos dar conta de tudo? Quem mais sofre com a ausência de rede de apoio que se impõe a essa mulher? Apostaria na resposta de que sofrem as nossas crianças, essa mulher e em consequência toda a sociedade, pois fazemos parte da nova realidade profissional. É preciso reconhecer o valor da mulher atuante e que quer atuar positivamente, contribuindo para o seu desenvolvimento e desenvolvimento das organizações e sociedade, até porque, para que a nossa realidade de privações deixe de existir, precisamos alterar as regras do jogo e isso só vai acontecer com a nossa participação, que não pode ter como requisito a nossa anulação como mãe.
Deixo outros questionamentos: Você homem que leu esse texto até aqui, de que forma você tem contribuído para equilibrar a carga de responsabilidade feminina na maternidade solo? Por que essa responsabilidade do dia a dia também não é sua? Afinal, você diz ser um “Homem”. Que homem é você?
Camylla Sadoque
Servidora Pública Federal da Previdência Social há 10 anos, na análise de benefícios, gestão e coordenação técnica. Advogada. Especialista em Direito Público. Educadora no INSS e mãe. Descomplicando o Direito Previdenciário para você. InstaBLOG: @camyllasadoquerodrigues
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