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Sobre "Abandonar um Gato", de Haruki Murakami
Eu só percebi esses dias que amanhã faz dois meses que o Murakami não ganhou o Nobel - de novo kkkkkkkk
Brincadeiras à parte, no que isso implica? Eu diria que em nada. Eu duvido muito que Harukinho se sinta ou mais ou menos escritor por causa disso. Duvido também que, quem o lê, julgue sua qualidade por esse "detalhe".
Eu, inclusive, li o último livro dele recentemente. Foi o primeiro dele que li, acredita? [Já conhecia muita coisa a respeito de suas obras no geral, mas nunca tinha lido de fato.]
Se comecei pelo final? Acho que sim. Se demorei mais do que devia pra começar? É muito provável, acho que eu demorei mesmo. E se me perguntar o porquê, não vou ter uma resposta.
Acho que fiz o caminho inverso da maioria também ao começar pela não -ficção. A obra que li foi "Abandonar um gato", e deixa eu te contar: o livro me pegou demais.
Quando eu vi que a Alfaguara estava lançando ele, fiquei empolgadx demais pra lê-lo. Vi que se tratava da história pessoal do autor, da sua relação com seu pai e um pouco da relação deles com a história recente do Japão. Tudo isso me interessou.
Sempre me senti muito atraído pelo Japão, desde criança, quando conheci os animes e mangás e comecei a praticar artes marciais, até hoje, já que me atrevo a tentar caminhar nos passos do zen-budismo.
E quanto à promessa de explorar "questões familiares"... eu imagino que isso seja um interesse quase que universal, não? Todo mundo teve ou vai ter questões mal resolvidas ou mal acabadas com seus parentes, mesmo os mais queridos, e ouvir alguém falando de como tentou lidar com isso, é ouvir, em certo grau, alguém falando sobre o que nós também estamos tentando fazer.
E tudo isso que a sinopse promete o livro cumpre muito bem.
Murakami teve problemas sérios com o pai, e passou boa parte da vida sem falar com ele. Vieram reatar quando o senhorzinho já estava no fim da vida, esperando no hospital pela morte certa.
E o passado desse pai foi algo que sempre assustou Haruki. O Sr. Murakami tinha lutado na guerra sino-japonesa, e por muito pouco escapou da segunda guerra mundial, onde praticamente todos os seus colegas de exército morreram.
Investigando tudo isso, Murakami tenta entender melhor o pai, já que não o pôde entender bem em vida. Tenta entender melhor de onde vieram as cicatrizes do velho, que mesmo sem querer, as transmitiu pro filho.
Em dado momento, Murakami nos relata sobre quando o pai o contou de uma vez em que, junto de sua tropa, executou um prisioneiro. Essas feridas, esses traumas, vão perseguí-lo até sua morte, e continuam indo atrás de Haruki, mesmo depois dela. É tão forte tudo isso, que o pai reza uma prece todos os dias, sem exceção, pelos companheiros que morreram nos campos de batalha, em especial, pelos que morreram no episódio em que ele, não tivesse sido dispensado, provavelmente teria morrido também.
Juntando todos esses pedaços da vida do pai, Haruki acaba por nos contar também vários pedaços da história do Japão no século passado, mas de um ponto de vista muito particular, que é o ponto de vista de alguém afetado direta e indiretamente por todos esses acontecimentos, que se nos fossem contados de outra forma, pareceriam distantes e indiferentes.
Um exemplo?
Via de regra, quando pensamos nos aviões de batalha, pensamos neles lutando uns contra os outros, sem que tenhamos em mente as pequeninas pessoas que os vêem voar. Aqui, entretanto, temos Murakami falando sobre sua mãe, que em certo momento da guerra - e da vida -, correu na rua em desespero enquanto um caça sobrevoava a cidade e dispara contra tudo. A mãe, ainda criança, ainda menina, corria, pequenininha, chorando, cercada por tiros de avião.
Se só um desses projéteis tivesse sido disparado num ângulo minimamente diferente, talvez Haruki não tivesse nascido. Se o pai dele não tivesse voltado de sua primeira guerra no exato momento em que voltou, provavelmente Haruki não teria vindo ao mundo.
Nós acompanhamos Murakami observando todas essa rede frágil de coincidências, toda essa teia fina que precisou ser tecida para que ele estivesse nesse mundo, e frente tudo a isso, se sente pequeno demais.
Eu, pelo menos, me senti também nesse momento.
Nós paramos pra pensar, junto com ele, em como as pequenas pessoas são afetadas pelos "grandes eventos", e como toda História geral é recheada de histórias particulares, como toda história individual é uma história social. E mais do que tudo isso, como a vida é efêmera.
Eu me emocionei real com esse livro. Acho difícil não se emocionar. Fica aqui a minha recomendação. Eu, inclusive, vou atrás do resto da obra do Murakami. Gostei demais.
Luciano Felizardo
Luciano é escritor e sua cabeça gira em torno disso. Nesse espaço, vai falar sobre obras de arte (filmes, livros, músicas, etc) e as reflexões que teve a partir delas. Além de, vez e outra, tentar simplificar e trazer para o nosso cotidiano alguns conceitos de filosofia, política e psicologia - área na qual vem se graduando pela Ufal.
Suas obras podem ser adquiridas no site da Editora Ipê Amarelo ou entrando em contato com ele através do Instagram (@vezeoutrapoesia).