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Skinamarink: ser criança é um horror

Por Luciano Felizardo 26/01/2023 20h08
Por Luciano Felizardo 26/01/2023 20h08
Skinamarink: ser criança é um horror
Skinamarink, longa de estreia de Kyle Edward Ball - Foto: Imagem do Pinterest

Skinamarink dividiu muito as opiniões, e logo de cara dá pra entender o porquê.

A obra circulou muito entre as pessoas no Tik Tok, a partir de vídeozinhos curtos afirmando que era o filme mais assustador que eles já tinham assistido durante a vida.

Foi assim que ele chegou até mim. Eu não estou no app, é verdade, mas os divulgadores de cinema que eu acompanho estão, e quando eu os ouvi falando a respeito, quis logo ver.

Tirei uma madrugada, apaguei as luzes, pus os fones no ouvido e deixei rolar.

Aí é que tá: o filme exige isso, essa entrega, e é uma questão que começa por seu subgênero.

Skinamarink é um terror analógico, que é uma vertente do que chamamos de terror. O terror analógico não se utiliza tanto de susto ou artifícios como jumpscare, não precisa necessariamente de história nem que você entenda uma narrativa, ele só precisa que você veja algo e sinto medo daquilo. Daquilo por aquilo. O medo do terror analógico é intrínseco à peça. É o medo pelo medo. Geralmente numa estética meio "lofi".

[Achou difícil de entender? É que também é difícil de explicar. Na verdade, não se tem uma definição muito clara até agora.]

Muita gente debateu sobre o que é Skinamarink, mas na verdade isso não importa. Importa se você sentiu medo ou não. Importa a experiência pura e simples.

Eu senti. Senti um medo profundo e genuíno. Mas acho que já vem outra questão: esse filme, pra funcionar, precisa que você já tenha sentido medo daquilo antes.

"Daquilo o quê, Luciano?"

Do escuro. De ficar sozinho em casa. De acordar e não ver seus pais. De se sentir desamparado.

Nesse quesito eu me conectei demais. Fui uma criança muito medrosa, e tinha muito medo de ficar só. Um dos pontos principais do filme me fez lembrar muito de um medo específico que tive na infância, e que muita gente com história parecida com a minha também teve, que era o medo do "arrebatamento ". Se você foi uma criança filha de pais evangélicos, sabe o que era morrer de medo de todo mundo ser levado pro céu e você ficar na terra sem sua família.
Ainda sobre meus próprios medos, estar sozinho em casa e não ter quem me ajude contra perigos foi um pesadelo recorrente durante toda minha infância e boa parte da minha adolescência.

"Tá, mas e por que você tá contando isso tudo?"

Porque eu acho que a potência do filme tá nesses pontos de intersecção entre a obra e você. Se nada daquilo fez parte da sua história de vida, talvez você ache que é só um filme longo e estranho.

E "longo" eu nem digo em termos absolutos, já que só dura 1 hora e 40, "longo" é porque a obra leva tanto tempo pra "desenvolver" as coisas, que em vários momentos chega a parecer que não está acontecendo nada. E talvez não esteja. O funcionamento do filme depende também dessa dúvida. De olhar pra o escuro e não saber o que pode vir dali. E mesmo que não venha nada, só a apreensão que a possibilidade gera já é capaz de lhe agustiar, e só por lhe angustiar, isso já é horrível, mesmo que pareça descontextualizado.

E por descontexto, entenda: o longa parece um pesadelo. Muitas cenas chegam como sequências que foram justapotas sem um porquê, assim como acontece no mundo onírico. São enquadramentos meio tortos que não lhe deixam ver exatamente o que está acontecendo, coisas sumindo e reaparecendo sem motivo, repetições bizarras, pessoas que parecem não ser elas mesma [como a mãe agindo super estranho] e por aí vai.

Eu ouvi muita gente falando que o filme era sobre uma das crianças, o Kevin, que bate a cabeça, e aquelas cenas que vemos são a visão dele alternando entre o coma e o despertar. Imagino que isso seja possível. 

Pra mim, entretanto, parece que o tema é outro. E qual seria? Simples: ser criança é um horror.

Do meu ponto de vista, se formos entender o filme como uma história, o evento gerador de tudo parece ser uma separação entre os pais. É aí tudo vira um filme de terror para os dois irmãos.

Eles acordam e o pai sumiu, e de repente tudo parece um pesadelo. A casa não tem portas, ou seja, eles não têm meios para sair daquilo. Tudo sempre parece escuro, e até os desenhos que eles vêem os remetem a coisas ruins [inclusive, em algum momento o Kevin diz: podemos ver alguma coisa feliz?].

A mãe não parece mais ser a mesma pessoa, o que os causa medo e os faz sentir a insegurança e a incerteza daquilo tudo. O momento sombrio, o escuro da situação, parece nunca passar, e nem a noção real do tempo nós temos, já que quando se é criança, às vezes isso se perde mesmo. Em algum momento nos é dito que passou mais de um ano desde o começo. Uma noite daquilo parece uma eternidade, e no meio dessa eternidade, tudo é algo potencialmente assustador. Uma boneca, um carrinho com olhos, os legos. 

Ali, só uma criança parece entender o mundo que a outra está entendendo, e por ver as coisas pela mesma ótica, está também apavorada.

É comum que nós lembremos da infância por seus momentos bons, mas quando fazemos isso, costumamos esquecer de como também era difícil ser criança. De como tudo era muito grande, e de como as situações eram realmente pavorosas quando não nos sentíamos amparados, acolhidos, amados ou protegidos. É verdade que, mesmo quando adultos, isso ainda nos é essencial, mas quando se é criança e não se consegue ter a distinção clara entre o real e a fantasia, as coisas podem facilmente virar o que esse filme vira e nos fazer sentir o que Kevin e Kaylee sentem.

Ainda no meu ponto de vista, a obra chega a falar sobre traumas consequentes do terror de situações como aquela, quando mostra a voz que Kevin ouve. Na minha percepção, aquilo é nada mais que "ajuste criativo", que na psicologia é como se denomina a forma que conseguimos achar pra lidar do melhor jeito possível com barreiras que encontramos na vida [saiba que isso foi uma explicação hiper-resumida e rasa, mas posso desenvolver melhor depois]. E é justamente pela pouca idade e pouca maturidade/pouco apoio que a melhor forma que o garoto é tão problemática. Kevin decai emocionalmente num nível tão drástico, que a melhor saída que encontra é se mutilar. 

Kaylee, por sua vez, parece nem sequer achar uma maneira de processar seu trauma (a voz que Kevin ouve nos diz que ela não parava de repetir "quero ficar com os meus pais") então nós a vemos perder os olhos e a boca, ou seja, ser despersonalizada e perder o contato com o mundo externo, além de sua capacidade se expressar e agir sobre o ambiente ao redor.

Para além disso, me parece também que o filme bebe muito de duas fontes: o terror cósmico - pois não conseguimos ver de fato o objeto do medo [que nem parece ser realmente distinguível visualmente], tudo que temos daquilo tudo é a sensação - e a Nouvelle Vague {eu cheguei a comentar que "parece um filme de terror feito pelo Godard}.

Porém, eu não conheço suficientemente o diretor para confirmar tais hipóteses. O que sei dele, o Kyle Edward Ball, é que esse é seu primeiro longa e que ele tem um canal de curtas no YouTube, o "Bitsized Nightmares", onde divulga curtas baseados nos pesadelos de seus inscritos. Skinamarink, inclusive, tem origem em seu curta "Heck". E sim, estou MUITO ansioso pra ver seus próximos trabalhos.

Já deu pra entender que eu amei o filme, né? Poderia passar horas escrevendo a respeito, mas a proposta da obra é muito mais a experiência, então se você se identificou com alguma desses elementos explorados nele ou se ficou curioso para experienciar o que o longa oferece, eu recomendo demais. 

Vá sabendo que é um filme estranho, mas vá disposto a imergir - e me diga depois o que achou.

Luciano Felizardo

Luciano é escritor e sua cabeça gira em torno disso. Nesse espaço, vai falar sobre obras de arte (filmes, livros, músicas, etc) e as reflexões que teve a partir delas. Além de, vez e outra, tentar simplificar e trazer para o nosso cotidiano alguns conceitos de filosofia, política e psicologia - área na qual vem se graduando pela Ufal.
Suas obras podem ser adquiridas no site da Editora Ipê Amarelo ou entrando em contato com ele através do Instagram (@vezeoutrapoesia).

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