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E o disco novo do Djonga, hein?

Por Luciano Felizardo 14/11/2022 20h08
Por Luciano Felizardo 14/11/2022 20h08
E o disco novo do Djonga, hein?
Capa do álbum O Dono do Lugar, obra mais recente de Djonga - Foto: Imagem do Pinterest

Djonga lançou disco novo no dia 13 de outubro e assim que o YouTube me notificou [sim, eu ainda escuto música no YouTube] fiquei empolgado para escrever sobre o álbum.

Acabou que outros artigos passaram na frente e eu fui deixando pra depois, mas acho que ainda pode se dizer que o disco é recente.

Nem cheguei a digerir tudo. O próprio Djonga deve esperar por isso. Tem um trecho no terceiro disco que ele diz "cê piscou e eu já tô no terceiro/ tem gente que nem entendeu o primeiro inteiro/ arte é pra incomodar/ causar indigestão/ antes de tu engolir/ te entrego um prato cheio".

Mas o que eu me perguntei, assim que fui notificado do lançamento, foi: "como será que ele chegou pr'esse cd?"

Talvez, pra responder isso, a gente tenha que lembrar como foi que ele chegou pros outros.

Começando pelo primeiro, eu não sei muito o que falar além de: o Heresia é um grito, né?

É um disco de um Djonga mais jovem, mais raivoso, mais enérgico. As músicas são mais cruas, mais viscerais, mais agressivas.

Quando lançou ele, o Djonga já tinha ganhado visibilidade com Olho de Tigre, obra na qual marcou o público com seu bordão mais célebre até hoje, que é "fogo nos racistas".
Ele criou o espaço, e com o Heresia, ocupou-o. Na força mesmo. Na base do grito. 

Heresia é uma demarcação de território. É um anúncio de que tinha chegado alguém que viria a se tornar o que Djonga se tornou, alguém que dispensa apresentações, um rapper que está entre os da primeira prateleira, do alto escalão mesmo.

No segundo, O Menino que Queria Ser Deus, foi onde Djonga mostrou que não estava ali por acaso. Não tinha sido um sucesso de carreira curta nem sorte de principiante. Ele sabia MESMO o que estava fazendo. 

Abre esse disco com uma primeira música de reafirmação, e me parece ser onde ele institui essa tradição, já que as primeiras músicas de todos os álbuns seguintes vão ter esse teor. É aqui onde ele começa com "essa vai só pra quem pensou que nós tá fraco" e já se permite perceber-se como alguém que "venceu". Solta versos como "Os hater diz que eu caí no seu conceito/ pelo menos eu subi na vida/ olhei no espelho e encontrei Jesus preto/ tipo alto da compadecida" e "quando eu era menor no quesito beleza eu ganhava a pior nota/ hoje as filha da p*** que me deram zero falam 'crush, me nota'".

É nesse disco, porém, que Djonga parece usar da força que adquiriu pra mostrar mais do seu lado "frágil". Aqui sua força bruta é menor, e sua sensibilidade se mostra mais claramente. A segunda música é um dos desabafos mais sinceros que eu já ouvi. A quinta, declaração de amor dele pra sua ex, mãe de seu primeiro filho - que ali já era uma grande amiga mesmo não sendo mais seu par romântico - é uma coisa belíssima. A música que ele faz pro seu menino, "meu pequeno Ogum, me ensina a batalhar", é de uma delicadeza sem tamanho. Nessa música, aliás, Djonga bate numa tecla que ele viria a bater em toca sua carreira até aqui, que é a crítica ao machismo - tanto o da sociedade em geral, quanto o seu próprio, já que sendo criado num mundo assim, é um conjunto de comportamentos que ele vai acabar reproduzindo uma hora ou outra - e nessa tecla ele bate com "e olha bem o que cê faz com mulher, menor/ outro dia te vi saindo de dentro de uma vagina".

Sinceramente, essa punch line me arranca arrepios até hoje.

No terceiro, o conceito é mais conciso, embora talvez mais complexo. 

Em "Ladrão", Djonga quer "roubar" de volta tudo que tomaram de nós. "Eu vou roubar o patrimônio do teu pai/ dar fuga num Chevette e distribuir na favela/ não vou mais empurrar sujeira pra debaixo do tapete/ nem pra debaixo da minha goela/ eu sou ladrão."

Achei interessante de notar na época que a auto-descrição do artista mudou nas redes sociais. Se durante o segundo álbum ele se autodenominava "jogador" - que veio do trecho "se eu jogo eu venço/ e tá tenso, ô/ nós é jogador" - durante este, ele se entitulava "Ladrão".

O começo do disco é daquele jeito mesmo, e o fim da primeira música vem com um poema fortíssimo, no qual ele declama "no olhar da madame eu consigo sentir o medo/ tu cresce achando que tu é pior que eles/ irmão, quem te roubou te chama de ladrão desde cedo" e vem com um "então peguemos de volta o que nos foi roubamos/ mano, ou você faz isso ou seria em vão que nossos ancestrais teriam sangrado."

E não é só simbólica ou liricamente que Gustavo - o Djonga - faz isso. Basta pesquisar toda riqueza material que ele trouxe pra o lugar onde vive, pro seu entorno, pra sua vizinhança. Ainda nesse poema ele deixa isso claro. "De onde eu vim, quase todos dependem de mim/ todos temendo meu não, todos esperando meu sim/ do alto do morro rezam pela minha vida, do alto do prédio, pelo meu fim".

E além disso tudo, Gustavo traz também o valor e a memória pra os seus, como na música em que homenageia sua avó e seu pai, a "Bença".

O fim do disco, entretanto, me parece triste. Soa quase como um lamento do Djonga por, embora fazer tudo que possa, não conseguir fazer todo o necessário. 

Na última música ele fala "Waltin que amava carro morreu sem ter o seu, saudades/ esse mano era bom/ agora eu tenho a nota, podia dar um pra ele/ grana que eu fiz com o som" e termina o álbum com Elis Regina cantando "O meu pai foi peão/ minha mãe, solidão/ meus irmãos perderam-se na vida à custa de aventuras."

Não me soou como nada menos que natural quando saiu o quarto álbum e o foco ainda era trazer o holofote pra sua quebrada.

"Histórias da Minha Área", porém, é pra mim o disco menos memorável. Certo que um disco "ruim" do Djonga ainda é um ótimo disco, mas desse eu não consigo tirar nada além de: é realmente uma transição entre esse sentimento de "nós" e a busca do "eu" que Gustavo nos mostra no quinto cd.

"Nu" é a obra mais intimista do Djonga, onde vemos um Gustavo triste e precisando de espaço pra si. 

No quarto já dava pra ver nuances disso, como no "sempre quis virar Deus pra ser mais humano", resgatando um desejo esquecido nos primeiros passos da carreira, mas no quinto isso chega a outros níveis, e Djonga canta versos como "É melhor desistir ou viver humilhado?/ Coisas que passam na mente de gente que vem de onde vim/ ó, Lucas Penteado", "noites sem saber mais porque eu faço isso/ sabendo que geral me acha fascinante" e "não é sobre parar, é sobre como é difícil se manter em movimento/ continuar sendo o cara do momento/ tipo, se aparecer alguém melhor, eu arrebento/ mas descobri que o segredo é se amar/ e eu nem me amo tanto, 'xa pra lá."

É nesse quinto que ouvimos coisas do tipo "Acelerei demais e me perdi na curva" e "hoje eu só peço, me dá a mão " ou até mesmo "eu falei pra minha mãe que eu tenho medo/ que eu ainda tenho medo".

Até as love songs aqui estão mais voltadas pra algo que busca se fechar em si e aproveitar esse espaço a sós. Se nos outros álbuns nós tivemos canções como "os pela ontem perguntaram/ se o que nos tinha era sério/ os cara acha que sério é se prender/ ao invés de curtir um momento sincero e eterno/ eu acho que 'to te querendo pra sempre/ meu pra sempre é o agora, me contento com isso" e "É que eu gosto delas todas/ não me chama de cafajeste, o pai te ama/ [...]/ 'cê não precisa de mim para nada, eu não preciso de você também/ pra ser sincero, eu quero dominar o mundo, eu vim só perguntar se você vem", aqui não, aqui nós temos "Tô pra ver se agora flui, mané/ cansei de uma noite, fui, valeu/ dá pra ser só eu e tu?/ só eu e tu/ [...]/ eu quero passar a vida toda/ e não só noites com você."

E esse álbum, Djonga fecha com a música que veio a ser a minha preferida: "Eu". 

Nessa música ele grita alto por descanso, por privacidade, pelo direito de viver tranquilo a própria vida. Aponta desde a superficialidade do mundo dos ricos - como em "To numa casa grande cercado de amigos/ amigos? Só tô numa casa grande/ narrei seu mundo igual Galvão, me amaram pique Silvio Luiz, ó/ vou terminar igual Casagrande" - até o ônus do holofote que ele tanto buscou - "eles te fazem Messias, mas preferem Barrabás/ [...]/ Antes era pouco sapato, hoje até gente tem no meu pé/ é o que justifica o cheiro do chulé/ confiei demais, só depois vi que/ nem todo bicho de goiaba, goiaba é/ desde criança querem meu CPF no lixo/ tentou me cancelar, chegou atrasado." Gustavo nos mostra que vinha sentindo a solidão de forma tão profunda - "mais de cem mil nos trend' do Twitter/ na rua ninguém, não vou levar vocês a sério" - que sente que perdeu a própria 'alma', que é o que dá pra se entender dos trechos "Ganhei o mundo quando perdi a mim mesmo/ perdi o jovem eu, perdi aquele cara cheio de tesão, bem louco e aventureiro/ quer dizer, continuo maluco, mas só maluco" [fala tirada do filme 'Rogério Duarte: Tropikaoslista'] e "Ganhei tanto dinheiro que vi que o problema não é o dinheiro, é justamente a busca por dinheiro/ meu Deus, me perdoe e deixe entrar no Céu, no buraco da agulha eu quero ser o camelo."

Não fiquei surpreso quando, após lançar o disco, Djonga anunciou que ia encerrar o ciclo no qual vinha, de lançar um álbum por ano, todo dia 13 de março.

Só que mesmo não sendo surpresa, isso me bateu agridocemente. Me senti aliviado que Gustavo teve coragem de tirar um tempo pra si, mas era tradição minha também esperar o álbum e comentar ele empolgado com meu amigo.

Porém, se esse anúncio não foi surpreendente, quando o YouTube me notificou do álbum novo eu fiquei chocadx.

O disco abre com a música tradicional de reafirmação, e pra me responder, eu que perguntei "e ele já estava pronto pra voltar?", Gustavo joga "Tô bem" como refrão dessa primeira canção. 

Segundo ele mesmo, Djonga voltou porque precisava, e não por motivos só seus, mas pela continuidade da luta coletiva. É na primeira música que ele diz "mas vivo a mesma coisa daquele passado/ achei que podia relaxar, eu tava cego/ então tive que voltar a fazer rap pesado/ pros menorzin' não ter mais que vender prensado".

A missão está muito clara nesse disco: ele quer fazer seus irmãos seguirem melhorando de vida. Ainda é a mesma missão do primeiro cd, quando ele cantava "honrando cada irmão a 7 palmo/ pra um dia ouvir mais de 7 mil palmas/ pra talvez salvar mais de 7 mil almas/ pra eu me curar dos meus 7 mil traumas". Isso fica claro ainda nessa primeira música, nos versos "o dono da lancha tem a cabeça branca/
só que tem vinte anos e a pele preta", mas é em "Bala Fini" que isso está de fato escancarado. 

É nessa quarta música que Djonga canta frases como "pondo os menor' pra vestir Nike/ pra ter uns quilate'/ é, pro povo daqui sorrir" e "que no dia do meu funeral, só não 'teja de Porsche quem não quis." [Alusão ao Sidoka, talvez. Um dos tantos que ele pôs nos palcos].

E sim, aquele sentimento do fim de Ladrão parece ainda estar aqui. Djonga ainda se vê como um Dom Quixote lutando contra moinhos de vento, mas parece ter entendido que pior seria esse luta sem ele sendo porta-voz dos seus.

"Entendido" é bem a palavra. Não só nesse quesito, mas em outras problemáticas levantadas anteriormente. Parece que, como no fim da Jornada do Herói, Gustavo foi o protagonista que alcançou seu objetivo e voltou da morte simbólica com um elixir.

Nesse disco ele parece fechar o ciclo da busca por si mesmo cantando "quando eu fiz NU achava que era fraco/ porque não consegui me adaptar/ só que eu vim pra ser pedra no sapato/ fama fica pra tu vai precisar" e "as paredes são de cimento/ anti ruído anti cancelamento/ eu já quis me mostrar pros de fora/ mas descobri que a saída é pra dentro". 

Inclusive quanto à "casa grande cercada de amigos", nesse disco, ele faz diferente só chama "gente que conheço antes do apelido".

Uma música que me chamou muito a atenção também foi a sexta, "Conversa com uma menina branca". Mas provavelmente Angela Davis falaria melhor que eu sobre essa faixa. Leiam o capítulo de Mulher, Raça e Classe em que ela usa a história da luta pelo sufrágio nos E.U.A. como exemplo.

E não é só a busca por si que parece ser concluída aqui. Ciclos que estavam abertos até metade do disco parecem ser encerrados.

Gustavo chega a reclamar da forma como tem que lidar com algumas coisas, dizendo "não gosto das postura que a rua me pede/ só que essa é a saída que a rua me dá/ 'cês nunca vai entender o que é ter que agir na bad/ já que seu bedroom tu não tem que arrumar", ou falando de como a vida o endureceu - através de circunstâncias como "uma pessoa me tocou sem eu querer/usava farda e foi um tapa na cara", "um garoto me tocou e era um chute, um soco/ disse meu pai que me ensinou, achei aquilo um saco/ até tentei resolver de um jeito um pouco fofo/ quando pude perceber, tinha me adaptado" e "não curei minhas ferida', eu só escondi as marca'/ hoje nós não pipoca e resolve no pipoco" - mas parece ver esse mesmo ciclo de violência, que explora a abertura na quinta música, sendo fechado na nona, quando sugere ao filho que resolva determinada situação agredindo alguém e o filho se nega.

{"É, querido Deus
Aqui em casa, somos três agora
Nós somos quatro agora
E um de nós me disse que alguém o tocou
Foi uma mordida, ele tava na escola
É, foi gente querida, foi tipo gente nossa
Foi gente igual ele, tipo foi gente nova
Mas pega esse moleque e faz seu nome, neguin'
Filho meu não vai ficar de piada na roda
Ele mexe a cabeça em sinal de negativo
O silêncio fala, o mundo chama pra fora
Nasci de novo, será o fim de um ciclo?
Querido Deus
Acho que alguém me tocou agora"}

[Quanto à quinta música, acho que não seria exagero dizer: se Emicida fez uma versão sua e mais pesada de Sujeito de Sorte, aqui Djonga fez uma versão sua e mais dolorida de Como Nossos Pais.]

Em "O Dono do Lugar", Gustavo não encerra com melancolia, como no terceiro álbum. Mesmo ciente da luta e do tamanho da batalha, ciente de que às vezes, pra quem tá de fora, parece ser um confronto contra moinhos de vento, Djonga sabe o que já conquistou e o que ainda tem pra conquistar.

Perto do fim, coloca gente sua pra cantar "trampa comigo hoje quem me fortaleceu ontem/ tirei minha mãe da casa que chovia dentro" e "querer tudo que quis, não é vacilação/ pra quem nasceu rico, é fácil falar que é ostentação/ [...]/ peixe no bolso de troco e ela achou que era miragem." Sabendo tudo pelo que teve que passar - "bem antes do mic a vida me fez Tyson" - Gustavo, aqui, se permite sentir emoção por constatar coisas como "crescemos vendo Carandiru
Minha filha assiste Marsha e o Urso", porém completa o verso com "Isso te muda inteiro por dentro/ só não pode mudar seu discurso."

A missão de Gustavo segue visível.
Mas agora, mesmo que saiba que a batalha não acabou, ele se permite comemorar.

"Se eu quero, eu peço a Deus
E ele tem me dado (E aos orixá)
Pai tá tipo Jordan
É o bode, é o bala, ó"

Luciano Felizardo

Luciano é escritor e sua cabeça gira em torno disso. Nesse espaço, vai falar sobre obras de arte (filmes, livros, músicas, etc) e as reflexões que teve a partir delas. Além de, vez e outra, tentar simplificar e trazer para o nosso cotidiano alguns conceitos de filosofia, política e psicologia - área na qual vem se graduando pela Ufal.
Suas obras podem ser adquiridas no site da Editora Ipê Amarelo ou entrando em contato com ele através do Instagram (@vezeoutrapoesia).

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