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A política em Adão Negro

Por Luciano Felizardo 03/11/2022 21h09 - Atualizado em 04/11/2022 10h10
Por Luciano Felizardo 03/11/2022 21h09 Atualizado em 04/11/2022 10h10
A política em Adão Negro
Poster do filme Adão Negro, de Jaime Collet-Serra - Foto: Imagem do Pinterest

Acabei indo assistir Adão Negro. Rolê de família, ir ao cinema, comer chocolate. É sempre um ritual precioso. E é nessa onda que acabo vendo uns filmes assim. 

Semi-reclamações à parte, eu cresci lendo super-heróis, então é um subgênero pelo qual eu genuinamente me interesso, mas tenho a impressão que Vingadores Ultimato (2019) marcou o início da decadência dessa dominância comercial - processo que foi comum a todos os gêneros e subgêneros que se mantiveram no topo da pirâmide durante algum tempo. {E sobre isso pode ser que caiba um texto próprio}.

Adão Negro, em si, eu nem gostei. Pra quem gosta de filmes de herói, é um filme ok. Honesto. Cumpre o que promete - embora não prometa muito. É um típico filme do The Rock. Lutinha, explosão, encarada, frase de efeito e tudo mais. É só que eu não sou o público alvo mesmo, e quem gosta de enredo, roteiro, desenvolvimento de personagem, atuação e afins, também não vai ser.
Mas até aí nada anormal. Acho que era bem o que todo mundo esperava.

Então por que esse texto?

Porque a visão política do filme foi que me chamou a atenção. E não, não estou querendo dizer que o Adão Negro foi às urnas nem nada do tipo, e pra deixar o cerne do debate mais compreensível, acho que eu devia começar explicando qual é o conceito de "política" usado nessa conversa.

"Politikos" vem de 'Pólis', que a gente pode entender por 'cidade' ou 'comunidade', e 'tikós' pode ser lido como 'público' ou 'bem comum a todos'. [O "ítica" da palavra me faz lembrar do "ethos", que origina a "ética", e que pode ser entendido como "comportamento", mas não sei se isso vem ao caso].

Partindo daí, política seria a forma como lidamos com os assuntos comuns à comunidade, e não só com partidarismo, mas com toda atitude humana, já que é no social que nos constituimos seres humanos.

Um exemplo disso é este texto. Este que você está lendo. Escrever isso já é um ato político da minha parte. E muito melhor que eu, Rashid lhe explicaria quando cantou "escrevi meu próprio livro e sei que isso deixa o sistema inquieto, porque segundo as expectativas, era pra eu ter crescido analfabeto."

- Tá, Luciano, mas e o filme tem o que a ver com essa explicação toda?

Tem a ver que toda obra explana uma visão política. Não de quem o diretor ou o roteirista, ou o pintor, escritor ou o ator - sei lá - vão votar. Não. A visão política que constitui a obra, é a que constitui o pensamento do autor sobre como as questões sociais são ou deveriam ser.

Não sei se consegui me fazer entender até aqui, mas se sim, partamos para a política em Adão Negro.

Logo no início do filme somos apresentados a um país que eu não sei ao certo a qual nação aludia. Carregava muitos elementos que remetiam ao Egito, mas em alguns momentos nos mostrou coisas que podiam ser associadas à América do Sul (como por exemplo, a camisa da seleção colombiana, a 9 do Falcão García, que aparece duas vezes - numa obra de 2 horas). Até aí ok. 

Esse país da história está sob um regime autoritário. Não lembro se fica claro quem é que comanda tudo, mas o narrador nos diz que o controle está na mão de "mercenários", o que nos leva a crer que, para agirem daquele jeito, em unidade e concordância, é porque devem obediência a um pagador em comum. 

Logo nas primeiras cenas nós acompanhamos uma célula de resistência e revolução, e num dos momentos mais patéticos do roteiro, temos uma criança de skate que lança um discurso super enlatado. [Uma pausa pra falar que essa criança anda de skate em absolutamente todos os momentos e que isso me deixou profundamente irritado. Prossigamos.] O garoto fala contra o imperialismo, o sufocamento que a cultura local vem sofrendo e tal tal tal. São coisas louváveis [pelo menos pra mim], mas que se tornam estranhas no contexto mais amplo do filme, e nós vamos chegar lá daqui a pouco.

Algumas cenas depois disso, surge o protagonista, que tem sua origem num movimento de rebelião contra um regime absolutista e que - pelos fatos históricos e culturais que cercavam esse movimento - carrega em si muita raiva e um desejo por vingança.

Até aí somos levados a crer que é a raiva dele que servirá de combustível na luta pela libertação daquele povo [que também é seu povo], e que as contradições vindas daí vão ser debatidas, mas assimiladas pelo contexto. Mas não. E é nesse ponto que a coisa toda me intrigou.

Surgem heróis, que diferente do Adão Negro, são estabelecidos como heróis "de verdade". Eles têm um senso moral e crítico muito claro, têm princípios facilmente discerníveis e seguem o que se entende de maneira geral como "o bem". Acontece que é esse bem, mostrado como O BEM, que vem pra controlar a revolta ao redor do protagonista e, por conseguinte, manter o status quo do lugar, ou seja, manter o povo sob um jugo de autoritarismo. 

Parece até que isso vai gerar uma discussão interessante, mas não esqueçamos: é um filme de herói e lutinha. O protagonista é violento, e os heróis de verdade tentam impedi-lo e mostrar que ele está equivocado, e com isso pedir submissão e subserviência. Volto a dizer: parece que o debate vai andar... mas não anda. E é aí que está o problema. 

A conclusão da coisa toda parece ser a de que a resistência a um regime como aquele tem que ser sempre comedida, já que é com maniqueísmo que heróis de verdade - como aqueles - pensam. 

A palavra chave pra tudo é essa: maniqueísmo. Acaba que a coisa toda se resume a essa visão maniqueísta. O que é bem estranho pra um filme de anti-herói, aliás.

O próprio proganista vai se convencendo, aos poucos, que o maniqueísmo raso é que é o ponto de vista "correto", e se rende ao grupo de heróis.

Quanto a esse grupo, vale a gente comentar com atenção.

Seus integrantes são o Senhor Destino, a Ciclone, o Gavião Negro e o Esmaga-Átomo. Com exceção do Senhor Destino, todos de pele escura. E com exceção da Ciclone, o filme faz questão de mostrar o quanto todos são abastados. [O Esmaga-Átomo, aliás, me pareceu uma crítica ao nepotismo, mas eu não sei se os roteiristas tinham tino pra tanto]. E tendo tudo isso em mente, não me soa como coincidência que o líder deles, o que manda, desmanda, planeja e comanda, seja justamente o senhorzinho branco. Ele é quem tem o pensamento mais coeso, a habilidade de prever as consequências das atitudes, a capacidade de ponderar tudo muito bem, e digo de novo: ele é quem manda.

Quando ele e o Gavião Negro conseguem convencer o Adão Negro a desistir de sua força, também não soa como coincidência que eles tenham como a ênfase do processo privá-lo da voz, da palavra, da expressão.

E quando finalmente o grupo dos bons moços percebem que talvez o mundo não se explique pela lógica maniqueísta, de bem e mal, a revolta do protagonista ganha espaço, mas só porque o senhor branco lhe dá aval para isso.

E a coisa fica tão bizarra, que o aval pra fugir do maniqueísmo só é dado pra que haja um combate contra o mal encarnado. Um vilão genérico que não podia estar mais perto que aquilo do estereótipo ocidental do "mal". Ele é um demônio, daqueles que figuram nas religiões de matriz judaico-cristã [que curiosamente estampa no peito um símbolo de religiões pagãs pré-cristãs - vai entender...]

Ah! E lembra do que eu escrevi sobre o menino ali em cima? O que odiava o imperialismo? Pois é. O quarto do garoto só tem imagem de super-herói estadunidense e ele ajuda no combate ao mal vestindo uma capa com um símbolo dos E.U.A. A coisa acaba descambando numa propaganda desse tipo, além de passar um paninho pra o regime que governava através dos mercenários, já que eles parecem muito menos "malvados" do que realmente seriam [se você assistiu, você sabe que se aquilo fosse levado a sério, o menino levaria PELO MENOS] e na hora do confronto final, nem é contra esse regime que o povo do país luta, é contra uns esqueletos que surgem lá do nada.

Mas é aquilo. Eu não era o público alvo. Se você for, não se incomodar com isso, e curtir filminhos de luta, vai gostar. Tem lutinha, explosão e frase de efeito.

Luciano Felizardo

Luciano é escritor e sua cabeça gira em torno disso. Nesse espaço, vai falar sobre obras de arte (filmes, livros, músicas, etc) e as reflexões que teve a partir delas. Além de, vez e outra, tentar simplificar e trazer para o nosso cotidiano alguns conceitos de filosofia, política e psicologia - área na qual vem se graduando pela Ufal.
Suas obras podem ser adquiridas no site da Editora Ipê Amarelo ou entrando em contato com ele através do Instagram (@vezeoutrapoesia).

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