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Sobre Dahmer, da Netflix: estamos romantizando assassinos?

Por Luciano Felizardo 17/10/2022 20h08
Por Luciano Felizardo 17/10/2022 20h08
Sobre Dahmer, da Netflix: estamos romantizando assassinos?
Frame de Dahmer, série da Netflix - Foto: Imagem do Pinterest

{Antes de começar o texto propriamente dito, gostaria de dizer que não conheço o caso real nem procurei nada a respeito. Este artigo será pautado apenas na série.}

Fazia algum tempo que eu não parava pra ver nada da Netflix. Me parecia que a empresa tinha entrado num limbo de produções MUITO semelhantes, e que mesmo quando tinham uma proposta diferente [como foi na obra inspirada no gibi 'Sandman', do Neil Gaiman] a parte técnica, o audiovisual em si, vinha sempre empobrecido por aquela direção padronizada. Tudo muito igual. Cortes igual, enquadramentos iguais, cores iguais. Parecia que as maiores produções eram todas feitas em ritmo industrial, de linha de montagem mesmo, e que toda série era a mesma e feita para o mesmo público - incluindo temática, roteiro, personagens e tudo.

Foi então com grata surpresa que eu me deparei com "Dahmer". A estética era diferente. O tratamento de cores era cuidadoso. As atuações eram primorosas. Os planos sequência [que saudade que eu tava de um plano sequência bom] deixavam claro que os episódios foram construídos com esmero. Acabei parando pra assistir. Até li "um canibal americano", mas nem refleti muito a respeito. A estética já tinha me ganhado.

Resultado: quase não consigo terminar o primeiro episódio.

A série não começa mostrando a origem do protagonista, as motivações, a história regressa, nada. O primeiro episódio já é uma de suas "caçadas". Você já é apresentado àquele universo sendo jogado de cara numa situação como essa. A montagem das cena foi [pra mim] algo claustrofóbico, o ritmo lento da situação me pegou de forma ansiogênica, as constantes tentativas de fuga por parte da vítima e os fracassos resultantes foram me angustiando tanto, que quando a vítima [SPOILER] consegue fugir, eu senti como se eu mesmo tivesse escapado daquele cenário. O take em plano médio do rapaz correndo na rua me permitiu respirar fundo e aliviado.

Até aí, sem grandes surpresas. Imagino que não é necessário um conhecimento profundo do caso pra imaginar que o assassino acabaria preso e julgado. Foi assim na vida real. É assim no primeiro episódio. Ele é pego. O problema é que, até ele ser pego, se passaram anos e anos, e durante todo esse tempo ele esteve livre para fazer o que quis - basicamente de forma impune. 

É nessa discussão que eu queria chegar.

Não vou discorrer muito a respeito dos aspectos técnicos da série [até porque, pelo que eu já escrevi acima, acho que minha opinião já ficou óbvia]. O debate que, no meu entendimento, a série quis levantar - e que deve ser levantado - é sobre como figuras como essa são criadas na nossa sociedade.

Pra início de conversa, seria interessante eu dissecar um pouco o conceito de romantização, já que essa pauta é que parece estar em voga quando se trata dessa obra. Ouvi muita gente falar disso, e ouvi muita gente falar que ouviu muita gente falando disso. Pra mim, não foi assim que a série soou. Romantizar me parece ser o mesmo que inocentar o agressor ou até glamourizar o acontecido, e o que eu vi foi a obra indo em outro sentido. Quando ela aborda os diversos aspectos da vida do assassino e explora suas possiveis (e múltiplas) causas, faz isso não com o intuito de tirar do criminoso a responsabilidade, mas de pensar como é que isso foi possivel, psicológica e socialmente. Explicar é diferente de justificar. E explicar é, até mesmo, necessário. Precisamos pensar a respeito de temas delicados MESMO, pois se não investigarmos a fundo a raiz de problemas como esse, não seremos capazes, enquanto sociedade, de pensar maneiras de sanar essas feridas e, principalmente, de evitá-las. Queiramos ou não, aceitemos ou não, Dahmer foi um caso real, que pode vir a se repetir se não entendermos quais condições tornaram ele possível. Isso porque, se não as entendermos, não teremos nada que possa ser feito a respeito.

É claro que, por parte do público, é essencial que haja essa maturidade ao assistir a série, porque não havendo, as chances de que se caia numa pura fetichização dos acontecimentos é grande. E o pior é que, por mais cuidadosa que a série seja, por mais que ela levante essa questão até mesmo nos episódios que fazem críticas claras à mitificação do assassino, o ato de transformar em mercadoria e comercializá-la já expõe a obra a esse risco. Não existem garantias de que o público irá "consumir o produto" com o olhar crítico e a cautela necessários {e é aí que se fazem importantes discussões como esta}.

Porém, nesse sentido, acho até que a série mais acerta do que erra. Eu imagino o quão doloroso pode ter sido (e deve ter sido) para as famílias das vítimas, mas o fato de mostrar seus nomes, parte das suas histórias e o impacto real que suas mortes tiveram na vida de seus entes queridos, serve para nos lembrar de que, em casos como esse [mesmo os que viram mercadoria], foram pessoas reais que morreram, foram famílias reais que foram destroçadas emocionalmente, foram mães reais que perderam seus filhos. 

Não posso falar a respeito da experiência dos outros, mas pra mim, cada morte daquela foi sentida, principalmente as dos personagens que são melhor desenvolvidos [como o é, por exemplo, o Toni]. No final, quando as fotos deles são exibidas, eu me senti genuinamente abalado por aqueles com quem a série me permitiu criar vínculo enquanto espectador.

Não sou um assíduo consumidor de material sobre serial killer, é verdade, mas esse me pareceu um dos mais cuidadosos entre os que tive contato. {Um que eu indico e que segue essa linha é Era Uma Vez em Hollywood, do Tarantino. Tira total o foco do criminoso, lhe faz sentir empatia real pelas possíveis vítimas e tem uma virada sensacional.} E acho até curioso quando eu paro e penso que existem mesmo espectadores aficcionados por esse tipo de narrativa. Não tenho conhecimentos que expliquem nem leitura de pesquisas científicas a respeito, então só posso aqui levantar hipóteses. 

Uma delas é justamente o distanciamento da questão, a impessoalidade que ela toma. Aquilo não parece uma coisa real, então se torna consumível como ficção. 

A outra é que violência vende. É um produto que circula com extrema facilidade, e os meios de comunicação sabem explorá-lo ao extremo. É como eu falei acima, que mesmo a série sendo cuidadosa, ela ainda desperta nosso interesse em conhecer o "personagem", e pra despertar, o vendedores têm que torná-lo alguém interessante. O desejo dos produtores é que você queira comprar, principalmente quando a situação ainda está quente, quando casos como esse acabam de acontecer e de serem descobertos. O comerciante da informação não tem como prioridade levantar a bola pra um debate cuidadoso, com o zelo que se faz necessário, o foco está em chamar a atenção do interlocutor. 

Minha outra hipótese é levantada já na própria série. Me parece que assassinos desse tipo personificam nossos pensamentos mais sombrios. Como o pai dele diz em um dos episódios, algo tipo "eu sinto muito, porque você pôs em prática o que eu só imaginava". Essas figuras refletem nossos lados mais enojáveis, e por, via de regra, não termos o hábito de pensar a respeito dos nossos próprios pensamentos e nem o de investigá-los a fundo, isso nos apavora... e tudo que nos apavora, em certo grau, nos facina.

Quanto ao debate do racismo estrutural, da homofobia estrutural, da falha das instituições e etc, acho que nem é necessário eu escrever. A série vai tratar disso melhor do que eu. O debate na obra é bem evidente, bem aberto, e seus argumentos são muito mais coerentes e coesos do que os que eu poderia apresentar aqui.

Mas volto a dizer: no fim das contas, acho que a obra tem mais pontos positivos que negativos [o que não quer dizer que seja agradável de assistir]. 

A procura das origens do problema me parecem muito mais voltadas para entender a situação do que para atenuá-la. Talvez o real desconforto seja causado porque ainda não nos dispomos a pensar no que estamos fazendo enquanto sociedade para evitar que novos Dahmers sejam criados, ou pior, para permitir que sejam.

Luciano Felizardo

Luciano é escritor e sua cabeça gira em torno disso. Nesse espaço, vai falar sobre obras de arte (filmes, livros, músicas, etc) e as reflexões que teve a partir delas. Além de, vez e outra, tentar simplificar e trazer para o nosso cotidiano alguns conceitos de filosofia, política e psicologia - área na qual vem se graduando pela Ufal.
Suas obras podem ser adquiridas no site da Editora Ipê Amarelo ou entrando em contato com ele através do Instagram (@vezeoutrapoesia).

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