Com Marcinho VP na cadeira número 1, Academia Brasileira de Letras do Cárcere é inaugurada no Rio

Por redação com O Globo 18/04/2024 20h08
Por redação com O Globo 18/04/2024 20h08
Com Marcinho VP na cadeira número 1, Academia Brasileira de Letras do Cárcere é inaugurada no Rio
Marcio Nepomuceno, o Marcinho VP, e Fábio da Hora Serra, o Sagat: membros da recém-criada ABLC - Foto: Divulgação

Condenado a mais de 50 anos de prisão por associação criminosa e lavagem de dinheiro, entre outras acusações, Márcio dos Santos Nepomuceno, o Marcinho VP, tornou-se um acadêmico. O criminoso — apontado como um dos principais chefes do Comando Vermelho (CV), maior facção do tráfico do Rio — foi empossado nesta quinta-feira, ao lado de outros cinco presos condenados, como membro da recém-criada Academia Brasileira de Letras do Cárcere (ABLC).

Marcinho VP está atrás das grades há 37 anos e, de dentro da cadeia, escreveu três livros: “Preso de guerra”, “Execução banal comentada” e “Marcinho — Verdades e posições”. Ele ocupa a cadeira número da ABLC, batizada com o nome do escritor Graciliano Ramos.

Atualmente, Nepomuceno cumpre pena no regime fechado na penitenciária de segurança máxima de Campo Grande (MS). Como não poderá deixar a cadeia para ser empossado, ele acabou representado na cerimônia pela família, incluindo mãe, esposa e uma advogada.

Por nota, Paloma Gurgel, advogada de Marcinho VP — e coautora da obra "Execução banal" —, afirmou que, embora ainda esteja preso, seu cliente "não deve mais nada ao Estado", pois teria atingido o limite máximo de cumprimento de pena no Brasil. "Os crimes as quais foi condenado já foram pagos", frisou, acrescentando que Nepomuceno virou um escritor com obras "de grande magnitude", que "consegue sobreviver" no cárcere "escrevendo livros através de cartas". Para Gurgel, o convite para ingressar na ABLC representa um reconhecimento "pelo seu esforço e dedicação em se ressocializar através da produção literária".

O poeta Fábio da Hora Serra, também conhecido como Sagat, de 45 anos, já integrou as fileiras tanto do CV quanto do Primeiro Comando da Capital (PCC), maior facção criminosa do país. Recentemente, publicou sua autobiografia, intitulada “O bandido que virou artista”. Na obra de 278 páginas, o agora escritor conta sua trajetória no mundo do crime e seu processo de ressocialização. Também empossado na ABLC, Serra passou a ocupar a cadeira número dois, denominada Nelson Mandela.

Nesta quinta, em cerimônia no Centro do Rio, também estão sendo formalizados como integrantes da academia Edilberto José Soares, Emerson Franco, Paulo Henrique Milhan e André Borges. O sexteto inicial, porém, vai ganhar novas adesões em breve.

A vendedora Amanda Karoline, de 31 anos, era casada com o comerciante Rômulo Barbosa da Cunha, de 32. O casal se conheceu numa praia de nudismo chamada Tambaba, no município de Conde, litoral paraibano. No início, o romance era um mar de rosas. Com o tempo, segundo conta Amanda, o marido tornou-se violento. Ela passou a ser humilhada e espancada pelo companheiro, que a obrigava a transar com homens desconhecidos na frente dele.

Cansada das agressões, Amanda arquitetou um plano em conluio com a amante do marido. Ela contratou um matador de aluguel por R$ 5 mil para cometer o crime. Rômulo foi assassinado em 2016, com quatro tiros no peito e no abdômen.

Presa, a vendedora confessou o crime no Tribunal do Júri e foi sentenciada a 20 anos de cadeia. Migrou para o regime semiaberto em 2022, com uso de tornozeleira eletrônica. Em Alagoas, onde cumpre pena e mora, Amanda começou a escrever sua biografia, intitulada “De Tambaba à prisão”. Hoje, ela vende seus livros de memórias na praia e já foi convidada para integrar a ABLC. Sua posse será em maio, juntamente com a do historiador Nesseilde Andrade, do Acre, condenado por tráfico de drogas. O futuro acadêmico escreveu o livro “Desvendado por Deus — Um testemunho de fé”.

'Iniciativa pioneira'

Os seis detentos que tomaram posse na ABLC não tiveram a qualidade de suas obras avaliadas para se tornarem membros. O principal critério para um detento ingressar na academia é tão somente ter um livro publicado.

“A Academia Brasileira de Letras do Cárcere surge como uma iniciativa pioneira destinada a reconhecer e valorizar as obras de escritores que produzem literatura mesmo estando privados de liberdade. Seu principal propósito é oferecer uma plataforma para que esses autores expressem suas vozes e compartilhem suas histórias, contribuindo assim para a diversidade e a riqueza da literatura nacional”, diz o texto de apresentação da entidade.

A ABLC foi uma ideia do desembargador aposentado Siro Darlan. Ele conta que o projeto nasceu dentro das penitenciárias do país em função do hábito que os presos têm de ler dentro das celas. A maioria se entrega à prática porque a Lei de Execuções Penais permite que a sentença seja reduzida em quatro dias se o detento ler e resenhar uma obra da biblioteca. Pela legislação, o preso pode ler até 12 livros no ano, conseguindo remir até 48 dias da pena.

Para criar a Academia Brasileira de Letras do Cárcere, Darlan conta que se inspirou em Nelson Mandela e Martin Luther King, que escreveram obras enquanto estiveram presos. “Cada um deles mandou mensagens importantes de dentro da cadeia. Sendo assim, os presos do Brasil também podem ter algo importante para nos contar”, disse o magistrado aposentado ao blog. Quando questionado se os membros da ABLC podem ser chamados de “imortais”, respondeu: “Como você chama os acadêmicos da Associação Brasileira de Letras da elite?”.

A carreira de Darlan é marcada por polêmicas. Quando era juiz de primeira instância, em 2001, ele proibiu a entrada de adolescentes em um show da banda Planet Hemp promovido pela Prefeitura do Rio, argumentando que o grupo fazia apologia às drogas.

Em 2013, já promovido a desembargador, ele teve destaque nos noticiários por conceder liberdade por meio de habeas corpus a sete dos nove criminosos envolvidos na invasão ao Hotel Intercontinental, em São Conrado, quando um bando armado com fuzis, pistolas e granadas manteve 35 reféns, entre funcionários e hóspedes, por três horas. Na ocasião, uma pessoa morreu e seis ficaram feridas. Entre os beneficiados estava Rogério Avelino da Silva, o Rogério 157, que assumiu o comando do tráfico na Rocinha após a prisão do megatraficante Antônio Francisco Bonfim Lopes, o Nem da Rocinha.

Veja quem são os primeiros integrantes da ABLC

Cadeira nº 1 (Graciliano Ramos): Márcio Nepomuceno, o Marcinho VP

Cadeira nº 2 (Nelson Mandela): Fábio da Hora Serra, o Sagat

Cadeira nº 3 (Martin Luther King): Edilberto José Soares