Túmulo medieval na Finlândia pertencia a um indivíduo gênero não-binário, aponta estudo
Nas últimas décadas, achados arqueológicos vêm mudando nossa visão tradicional sobre o papel dos gêneros em períodos mais antigos da história, especialmente durante a Idade Média. Talvez o mais conhecido exemplo seja a sociedade Nórdica, onde já é estabelecido que guerreiras de notável destaque contribuíram para os avanços militares dos Vikings na Europa. Agora, em um estudo publicado no periódico European Journal of Archaeology, pesquisadores revisitaram um famoso túmulo na Finlândia e, através de investigações mais detalhadas e modernas (incluindo análises genéticas), desafiaram as duas hipóteses tradicionais acerca do curioso indivíduo ali enterrado. O túmulo é uma prova de como pessoas não-binárias podem ter sido membros valorizados e respeitados da comunidade medieval.
Um notável túmulo Finlandês datado do período de 1050-1300 d.C., encontrado no ano de 1968 em Suontaka Vesitorninmäki (Figura 1), município de Hattula, tem sido tradicionalmente interpretado como uma mulher enterrada com duas espadas. Essa interpretação é baseada no fato de que o indivíduo (vestígios ósseos) ali presente estava vestindo roupas e acessórios e usando joias típicos de uma expressão de gênero feminino na época. Por décadas, o túmulo tem representado um exemplo popular de poderosas mulheres na Idade do Ferro Tardia e início das sociedades Medievais. De fato, na exibição permanente do Museu Nacional da Finlândia entre 1995 e 2016, o túmulo foi usado como evidência de líderes do sexo feminino no passado. O mesmo ocorreu na exibição 'Meet the Viking', no Museu Nacional da Dinamarca, onde a espada de punho bronze-decorada encontrada no túmulo de Suontaka (Figura 2) é apresentada como a arma de uma mulher guerreira.
A data dos artefatos via análise tipológica - no final do século XI ou no início do século XII - coincide com o período das Cruzadas (1025-1150 d.C.) na cronologia Finlandesa ocidental. Datação via radiocarbono do fêmur (osso) no túmulo dá suporte para essa data (921 ± 17 anos atrás).
A literatura arqueológica é, no geral, dividida entre homens e mulheres. Indivíduos têm sido interpretados de forma binária como homens e mulheres com base em pertences encontrados em túmulos (expressão de gênero), e o desenvolvimento de osteologia e da genética trouxe novos métodos para determinar se um indivíduo é do sexo masculino ou do sexo feminino. Aneuploidias cromossômicas - assim como certas condições genéticas e hormonais - ampliam a variação no sexo biológico, porém, ainda assim, é difícil para as investigações arqueológicas definirem a identidade de gênero desses indivíduos, a qual não é dependente do sexo biológico e cromossomos sexuais associados. O mesmo é válido para a orientação sexual.
A identidade de gênero é algo biologicamente determinado, inerente ao indivíduo, e associada com assinaturas neurais específicas. Não é uma escolha ou algo que possa ser ensinado. O conceito é distinto de ideologia de gênero (papel do gênero na sociedade) e de expressão de gênero (forma como o indivíduo expressa sua identidade de gênero).
A divisão binária dos sexos é amplamente baseada na visão moderna Ocidental, e é esperado que normas e expectativas de gênero tenham variado culturalmente, geograficamente e temporariamente. A visão tradicional enfatiza rígidos ideais masculinos na Idade Média, mas vários estudos recentes indicam que as sociedades no início desse período entendiam e estabeleciam gêneros de modo diverso e com nuances. Análises anacrônicas de achados arqueológicos podem resultar em interpretações errôneas sobre como indivíduos e expressões de gênero eram vistos e julgados no passado.
Apesar de espadas em túmulos no início do período Medieval no Norte da Europa poderem ser interpretadas de várias maneiras, desde símbolos de poder e status social até herança familiar de relíquias, essas armas ainda são frequentemente associadas com masculinidade e ideologia de guerreiro. Enquanto machados, pontas de lança e pontas de flecha eram ocasionalmente enterrados com corpos do sexo feminino, e podem aparecer em túmulos junto com joias femininas, espadas são itens raros em túmulos de indivíduos do sexo feminino.
Porém, um importante aspecto dos túmulos Nórdicos contendo indivíduos do sexo feminino e espadas é a ausência de joias e de outros acessórios femininos. Isso entra em acordo com a ideia de que o sistema de gênero na Escandinávia aceitava masculinidade como o único gênero normativo e permitia que indivíduos do sexo feminino somente obtivessem o gênero masculino em certas circunstâncias. Nessa linha, quando existem espadas, roupagem feminina e joias em um túmulo trazendo um indivíduo do sexo feminino, dúvidas quanto à correta interpretação acabam emergindo. No caso do Suontaka, duas hipóteses existem:
- ou o indivíduo representa uma mulher guerreira com uma anômala expressão de gênero;
- ou existiam mais de dois indivíduos enterrados, um do sexo masculino e outro do sexo feminino.
Essa última hipótese inicialmente ganhou força não só pela presença de espadas no túmulo, mas também pela presença de dois broches (geralmente considerados parte de um vestido feminino) associados ao esqueleto. Porém, investigações subsequentes não foram capazes de encontrar evidência apontando a presença de outro corpo na cova ou mesmo de artefatos sugestivos de um segundo corpo, com a única exceção a espada suspeita. Além disso, as dimensões da cova eram adequadas para apenas um corpo. Essas observações tornaram implausível a sugestão de que o túmulo inicialmente foi feito para duas pessoas.
No novo estudo, pesquisadores Finlandeses da Universidade de Helsinki e da Universidade Turku, em parceria com pesquisadores do Instituto Max Planck, na Alemanha, confirmaram que apenas uma pessoa foi enterrada no túmulo. À parte da espada com punho de bronze, todos os outros objetos estavam diretamente conectados com os vestígios ósseos. A espada sem punho estava localizada no lado esquerdo da pélvis e a faca estojada estava localizada abaixo dos ombros, indicando que o indivíduo tinha sido enterrado com uma típica vestimenta feminina da época. A presilha de corrente estava localizada sobre o peito, entre os broches, e, como não foi encontrado laços de corrente no túmulo, concluiu-se que a presilha pode ter sido usada como um pingente. O broche penanular e a foice também estavam em posições associadas especificamente ao corpo.
Na Finlândia, foices são comuns tanto em túmulos masculinos quanto femininos, apesar de serem mais frequentemente associadas com o sexo feminino do que o masculino.
Analisando amostras originais do solo no túmulo, os pesquisadores encontraram fibras pertencendo a pelos e penas diversas, sugerindo a presença de um travesseiro ou colchão e de peles valiosas, e - considerando os outros artefatos e armas - implicando em um elaborado e luxuoso enterro.
O esqueleto residual presente no túmulo consistia apenas de dois fragmentos de fêmur altamente degradados. Mesmo assim, os pesquisadores conseguiram extrair e sequenciar DNA antigo dos fragmentos ósseos. O material genético obtido rendeu pouco DNA endógeno humano, e, mesmo depois de um procedimento de enriquecimento do DNA extraído, os dados finais consistiram de apenas 106781 sequências de leitura correspondentes ao genoma humano (de um total de 18250176 leituras no geral).
Apesar da limitação dos dados genéticos, os resultados preliminares sugeriram que o indivíduo de Suontaka não possuía cromossomos X e Y esperados para um típico indivíduo do sexo masculino (XY) ou do sexo feminino (XX). Investigando em mais detalhes as sequências genéticas obtidas, os pesquisadores encontraram forte evidência de que o DNA analisado estava associado com um cariótipo XXY, com uma probabilidade de 99,75% ou maior (99,96%) para esse cenário. Mesmo quando foi levado em conta a baixa frequência populacional para o cariótipo XXY, os cenários XX ou XY persistiram como extremamente improváveis.
A condição na qual indivíduos do sexo masculino nascem com um cromossomo X extra é conhecida como síndrome de Klinefelter. Com uma prevalência de 1 para cada 576 nascimentos de bebês do sexo masculino, XXY é a aneuploidia mais comum em humanos. Os sinais clínicos do cariótipo XXY variam de muito sutis e imperceptíveis até aparentes diferenças em características físicas. A aparência anatômica de indivíduos XXY é típica do sexo masculino, e alguns deles nunca nem mesmo perceberão que possuem a condição. Porém, em outros casos, os sinais clínicos são mais pronunciados: infertilidade, hipospadia (a abertura da uretra fica em um ponto ao longo do lado inferior do pênis e não na ponta), falo e testículo pequenos, e ginecomastia (crescimento de mamas). Além disso, deficiência em testosterona pode causar atraso ou incompleto desenvolvimento pubertário.
Estudos sugerem maior sensibilidade e hesitação nos indivíduos XXY 'modernos', e inseguridades gênero-relacionados associadas a indivíduos do sexo masculino XXY sentindo-se fisicamente mais femininos do que outros do sexo masculino. Devido ao fato dos indivíduos XXY poderem comparar suas experiências a expectativas modernas de sexo e gênero, fica difícil dizer como os aspectos físicos e possivelmente psicológicos teriam sido entendidos e exibidos dentro da sociedade Finlandesa do século XI.
No caso do indivíduo de Suontaka ter expressado notáveis sintomas da síndrome de Klinefelter, podemos assumir que - apesar da idade de morte desconhecida - ele pelo menos passou da puberdade, quando sinais físicos teriam se tornando mais óbvios devido à falta de testosterona. Se as antigas sociedades medievais dividiam os indivíduos em homens e mulheres baseados em certos fenótipos, as mudanças pubertárias - ou a falta delas - pode ter levado o indivíduo de Suontaka a ser associado com um papel não-binário de gênero (ideologia de gênero) - independentemente da sua identidade de gênero. Aos olhos da sociedade, ele poderia ter perdido a masculinidade por causa da infertilidade - explicando talvez a mistura feminino-masculino na sua expressão de gênero.
Existe evidência de que travestis e especialistas ritualísticos gênero-diversos podem ter mantido um próprio nicho social e sido tolerados na sociedade Nórdica, mesmo esta sendo considerada ultra-masculina. Essa contradição possivelmente é derivada da ideia de que o próprio deus Odin estava associado com mágica feminina. Esses indivíduos podem ter sido membros respeitados e valorizados na Escandinávia, mesmo associados com um status feminino, incluindo nas comunidades Fínicas e Sámi.
Nesse sentido, o túmulo de Suontaka lembra um outro túmulo do século XII escavado em Vivallen, Suécia, no qual um indivíduo do sexo masculino estava enterrado com uma vestimenta feminina e acompanhado com itens tipicamente masculinos. De fato, o indivíduo de Vivallen tem sido interpretado como um pajé gênero-misturado, possivelmente pertencendo à cultura Sámi.
A ideia de gênero binário assume que existe um estrito caminho de ser um homem ou uma mulher, mas túmulos como o de Vivallen e o de Suontaka fortemente sugerem que isso não era verdade mesmo em sociedades medievais patriarcais. O túmulo de Suontaka pode ser visto como evidência de identidade e/ou de expressão de gênero não-binária sendo dada um proeminente valor e visibilidade na sociedade do Norte Europeu no início da Idade Média. O indivíduo pode ter sido um respeitado membro de uma comunidade por causa das suas distintas diferenças físicas e psicológicas; mas é também possível que sua aceitação como uma pessoa não-binária pode ter ocorrido por outros motivos, por exemplo, por pertencer a uma família local rica e bem conectada.
Nesse último ponto, se o indivíduo de Suontaka era membro de uma poderosa e influente família local, seu status social pode ter permitido mais liberdade e possibilidades na expressão da sua identidade de gênero. Uma posição social segura pode ter permitido uma vida não tradicional que não teria sido tolerada em outras circunstâncias.
Por outro lado, é possível que os modelos estritamente binários para a Idade de Ferro Tardia e início do período medieval não terem sido sempre correspondentes com a realidade. Enterros ritualísticos podem ser considerados uma exibição intencional de relações interpessoais e de identidade. No funeral de Suontaka, as pessoas que o realizaram deram o vestido, a joalheria, e a prominência da arma. É, portanto, possível que o indivíduo ali enterrado não era simplesmente um pajé travesti ou uma pessoa que foi forçada em um vestido feminino, mas um indivíduo que foi aceito e permitido de expressar sua identidade de gênero livremente, e, ao mesmo tempo, retido seu alto status na sociedade. O luxuoso túmulo e notáveis acessórios e armas possivelmente realçam a importância desse indivíduo na memória da próxima geração.
Aliás, em relação à famosa espada com punhos de bronze, presente em uma estranha posição no túmulo, os pesquisadores concluíram que a arma foi provavelmente escondida na cova em uma data posterior ao enterro. Isso reforça ainda mais a importância da pessoa para a comunidade na qual estava inserida.