'Ninguém sonha em ser coveiro', diz engenheiro que virou sepultador
Formado em engenharia mecatrônica, Bruno de Lima, 26, trabalha há um ano como sepultador no Cemitério da Saudade, na zona leste de São Paulo.
Ele foi contratado em uma das vagas abertas em caráter emergencial pela prefeitura no início da pandemia de covid-19, por meio de uma empresa terceirizada.
"Ninguém sonha em ser coveiro, né? Me formei em engenharia mecatrônica, já tinha feito o [curso] técnico, já tinha experiência na área. Mas o único emprego que está tendo agora é em hospital e cemitério", conta Bruno.
Antes da pandemia, ele estava se organizando para fazer um intercâmbio na Austrália. "Já estava com tudo certo para ir", diz. Agora, seu único plano é continuar trabalhando e juntar dinheiro até a pandemia acabar e as fronteiras reabrirem.
Ele conta que, quando foi chamado por um conhecido para trabalhar no cemitério, achou que o colega estava brincando.
"Um colega meu falou: 'Quer trabalhar de coveiro?'. Falei: 'Você está brincando?'. Ele falou: 'Estou falando sério, você quer?'. Aí eu estava desempregado, as contas atrasando, falei: 'Vou ver o que acontece'", conta.
"Mexia com tecnologia, com manutenção. Não tinha experiência nenhuma em cavar cova, em pegar pá. Quem já trabalhava como pedreiro, coisas assim, já tem facilidade maior para fazer o serviço", diz.
Já vacinado contra o covid-19, Bruno circula pelo cemitério com ar de autoridade e paz. "Depois que você se acostuma, vira tipo um parque", diz.
Para se proteger contra insetos e animais, ele veste blusa de manga comprida mesmo debaixo de um sol de 32ºC. Por baixo da roupa, usa ainda um colete para proteger a coluna.
"Estava agora cavando ali, apareceu uma lacraia. Se ela pica, você tem febre, vai para o hospital. Teve um dia que estava exumando um corpo, peguei o crânio na mão, saiu uma lacraia de dentro e quase picou minha mão", relata.
"Não tenho medo de nada, só dos 'trabalhos' [de macumba] que o pessoal vem fazer aqui no cemitério", afirma ele, que diz acreditar em Deus, mas não ter uma religião.
"Só chega mulher rica de Corolla, só carrão, para fazer os trabalhos. Outro dia deixaram até uma cabeça de bode", conta.
Anjo
Por rádio, Bruno avisa a um colega: "Arruma bem a cova que chegou um anjinho. Não é covid, mas não vai velar". O anjinho era um bebê, morto em uma complicação durante o parto, no hospital Santa Marcelina.
A mãe, internada com hemorragia, não pôde enterrar o filho. Cerca de 20 familiares participaram do cortejo e sepultaram o recém-nascido em um caixãozinho branco.
"A gente tenta não ficar impressionado, mas tem uns casos que marcam. Teve um que me marcou muito no ano passado, era um menino de cinco anos que tinha morrido espancado pelo pai. O rosto dele estava todo machucado, cheio de hematoma. Aquele dia eu fiquei lembrando do rosto dele", conta.
Gabriel Dalmaso, 23, estava em seu primeiro dia de trabalho como coveiro. Há um mês, ele enterrou a avó, vítima de um AVC (Acidente Vascular Cerebral), no mesmo cemitério.
"Tenho minha avó, dois tios e meu pai enterrados aqui. Quer dizer, meu pai não sei se ainda está, faz muito tempo", contou Gabriel. "E agora estou aqui, trabalhando de coveiro", diz ele, que antes era vidraceiro.
Limite dos velórios
Como parte do protocolo da pandemia, os mortos de covid-19 não são velados. Só de vítimas da doença foram oito no último domingo, sete no sábado e cinco na sexta-feira no Cemitério da Saudade, uma delas era um rapaz de 20 anos.
Até as 16h desta terça-feira, quando a reportagem esteve no local, já tinham sido enterradas duas vítimas do covid-19. Para os outros mortos, os velórios estão limitados em uma hora e máximo de dez pessoas.
Os coveiros relatam, porém, que nem sempre é fácil chamar atenção das famílias para cumprir o limite de participantes do velório.
"Tem moleque que a polícia mata, moleque de 19 anos, 20 anos, e chegam aqui vários moleques de moto. Não tem como chegar para eles e falar que o limite é 10 pessoas", dizem.