Morte de Maradona vira guerra familiar e confirma profecia do ex-jogador
Três meses após morrer, campeão mundial continua a dominar o imaginário da Argentina
"Nem mesmo morto eu encontraria paz. Utilizam-me em vida e vão encontrar um modo de fazê-lo depois de eu ter morrido."
A frase de Diego Armando Maradona é de 1996, um ano antes de jogar futebol como profissional pela última vez.
Pouco mais de três meses após a sua morte, ela se revelou profética. O camisa 10 campeão mundial de 1986 continua a dominar o imaginário da Argentina. As histórias, rumores e vazamentos de diálogos que apareceram desde 25 de novembro de 2020, quando o craque sofreu parada respiratória, formam uma novela seguida de maneira ávida pelo povo.
"Eu acho muito triste isso tudo. Não deixam a memória de Diego descansar. É uma briga sem fim", reclama Hugo Maradona, o Turco, irmão do ex-jogador. "Todo dia há alguma coisa na imprensa. Isso é lamentável."
Diferentes órgãos de comunicação do país fazem disputa de quem divulga mais áudios de conversas de WhatsApp sobre Maradona. A Justiça argentina investiga o neurocirurgião Leopoldo Luque e a psiquiatra Agustina Cosachov por homicídio culposo.
Apesar de acusada de negligência na internação domiciliar, quando Maradona não teria recebido os cuidados que deveria (segundo os promotores), a dupla médica não é protagonista no enredo iniciado pelo fim da vida de Diego.
Na última sexta (13), Dalma e Giannina Maradona, filhas dele com Claudia Villafañe, com quem começou a namorar no final da década de 1970, se casou em 1989 e se divorciou em 2004, denunciaram o advogado Matias Morla à Justiça. Elas o acusam de administração fraudulenta.
Morla foi o responsável por administrar o patrimônio, a agenda e os contratos de Maradona. Seu cunhado Maximiliano Pomargo vivia com Diego e estava na casa quando ele morreu. No início de dezembro, foi descoberto que o advogado havia registrado para uma empresa da qual é dono as marcas utilizadas pelo ex-jogador.
Na mesma sexta Morla reapareceu após três meses de silêncio. Postou em redes sociais uma mensagem de que continuava a trabalhar, como havia feito em todos os dias de sua vida.
"Eu fiquei sabendo da mensagem e a achei curiosa porque ele não explica várias coisas que deveria. Ele tem muito a dizer sobre o que foi feito do patrimônio de Diego e a questão das marcas", observa Mario Baudry, advogado de Dieguito Fernando, 6, filho de Maradona com Veronica Ojeda, com quem é casado hoje em dia.
Para entender a novela é preciso voltar ao dia da morte de Maradona. Ele foi encontrado sem sinais vitais às 11h30 por Cosachov e o psicólogo Carlos Diaz. Apesar das seis ambulâncias chamadas, não foi possível reanimá-lo.
Em 1º de novembro, um dia após completar 60 anos, o ex-jogador havia sido levado a um hospital em La Plata, cidade onde era técnico do Gimnasia y Esgrima. Reclamava de mal-estar e dores pelo corpo. Exame detectou um hematoma subdural na cabeça que o levou à mesa de cirurgia. Diego teve crises de abstinência por não poder consumir álcool. As filhas queriam levá-lo para uma clínica de reabilitação, algo que o paciente não queria ouvir falar.
Luque e Cosachov recomendaram uma internação domiciliar. Morla alugou uma casa em Tigre, nos arredores de Buenos Aires. A residência tinha cinco quartos no andar superior, onde também estavam todos os banheiros. Maradona não conseguia subir escadas. Foi improvisado um aposento no salão de jogos. Ele usava um banheiro químico para suas necessidades fisiológicas. Tomava banho de mangueira.
O site Infobae divulgou áudios de conversas em que diferentes pessoas discutiam o estado de saúde do nome mais famoso da Argentina. Em um deles, Pomargo pede a Luque para não deixar Diego ser levado a uma clínica porque dele dependiam "muitos empregos". Completa dizendo que se o craque não fosse afastado, haveria "dinheiro para todos".
Em outro áudio, o cunhado do advogado pede que não seja feita chamada de vídeo com ex-companheiros de Maradona campeões mundiais de 1986.
Ele temia que algum dos ex-atletas falasse mal de Morla para o camisa 10.
Ficou constatado que os termos da internação não haviam sido respeitados. O paciente em alguns dias se recusava a tomar remédios segundo Johnny Esposito, seu sobrinho que também morava na casa. A cozinheira conhecida como Monona disse para Ojeda que outras pessoas amassavam tranquilizantes e colocavam na cerveja de Maradona para que ele dormisse à noite. Apesar do histórico de problemas cardíacos, ele não tinha nenhum remédio receitado para isso.
Na última quarta (10), Dalma, Giannina e Claudia lideraram uma marcha no centro de Buenos Aires para defender a tese de que Maradona foi vítima de homicídio. O evento foi caótico, com uma multidão tentando se aproximar delas, que tiveram de se refugiar no saguão de um hotel.
É a mesma teoria de Ojeda que, apesar disso, entrou em conflito com as organizadoras da marcha por causa de outro áudio vazado. Nele, a mãe de Dieguito Fernando conversa com Leopoldo Luque sobre a saúde do ex-marido e apoia o neurocirurgião. Dalma ironizou a aliança entre os dois.
"Este áudio é de quando Diego estava vivo e estava preocupada com a saúde dele. Nunca vão encontrar nenhum áudio seu, já que você nunca ia vê-lo", devolveu Veronica Ojeda para Dalma.
Outro golpe para Dalma, Giannina e Claudia foi o apoio público dado pelas irmãs de Maradona (Rita, Claudia e Ana) a Morla, que as representam em um pedido à Justiça para que sejam reconhecidas como partes interessadas na investigação na morte do meia-atacante.
Nicolas Taffarel, fisioterapeuta amigo de Luque e que atendia Maradona, reclamou que quando o ex-jogador estava só, se cuidava, acordava cedo, se alimentava e ficava longe do álcool. Mas sempre aparecia alguém para oferecê-lo várias bebidas durante o dia, especialmente cervejas e vinhos. Acusou Jana, outra filha de Diego, a ir à casa para fumar maconha com o pai.
"É a maconha, o álcool, os comprimidos...", resumiu.
Entre todos os personagens dessa trama, ninguém sai tão mal dos áudios divulgados quanto Luque. Considerado o salvador de Diego até a sua morte, foi flagrado chamando Maradona de "gordo" e que ele iria "cagar muriendo", duas expressões pejorativas para se referir à possibilidade de o paciente morrer de uma hora para a outra.
Quando Cosachov lhe informa por mensagem que Maradona estava morrendo e sem sinais vitais, a preocupação do neurocirurgião era saber se "estavam bravos com eles", alarmado com possível mancha à própria reputação.
"Diego não morreu, Diego não morreu, Diego vive no povo", cantaram milhares de pessoas no bairro da Paternal quando o corpo do ex-jogador passou pela última vez pelas cercanias do estádio dos Argentinos Juniors.
"O mais importante era que ele estivesse aqui com a gente. Mas se o Barba [Deus] quis levá-lo, que o deixem descansar. Que a Justiça seja feita, mas que respeitem a memória de Diego", pede Hugo Maradona.