Pra que serve um Banco Central independente

Por Superinteressante 17/10/2014 00h12
Por Superinteressante 17/10/2014 00h12
Pra que serve um Banco Central independente
Foto: Superinteressante
Pra que serve um Banco Central independente? Não sei. Mas me bota lá que eu te conto. Brincadeira. Para entender pra que serve um BC independente a gente tem que entender pra que serve o BC at all. E um Banco Central serve para imprimir dinheiro e dar de graça para os bancos de verdade. Virtualmente de graça: a juros que você nunca vai ver na sua vida – hoje, de menos de 1% ao mês.

Mas o Banco Central também serve para passar a perna nos bancos de verdade. Pode chegar um dia em que você, banqueiro, está precisando de um cascalho emprestado para fechar as contas do mês. Onde é que você, que já é dono de banco, vai pegar emprestado? Com o Tio Patinhas? Mais ou menos. Você pega com outro banco.

Vamos dizer que você é o dono do Itaú, e pediu um bilhãozinho emprestado para o seu amigo do clube de golfe, o Sr. Bradesco. Vocês acertam um juro, tipo, de 0,5% ao mês. Aí, quando estão para apertar as mãos e selar o negócio, vem o Banco Central e estraga a festa. Ele chega para o Bradesco e diz: “Opa. Quer dizer então que você está com um bilhão sobrando para emprestar para o seu amigo? A 0,5%? Empresta pra mim que eu te pago 1%”.

O que o Sr. Bradesco, que não é besta, faz? Empresta para o BC, lógico. Muito mais negócio. Rapidinho, a notícia de que o Banco Central está pegando emprestado geral e pagando o dobro de juros no mercado de empréstimo entre bancos começa a se espallhar. E você, probre dono do Itaú, fica na mão: quando for pedir em outro banco, vai ter que pagar no mínimo os 1% ao mês. O dinheiro fica mais caro para você do dia para a noite.

O que você leu aqui não é uma alegoria. Os bancos pegam dinheiro emprestado uns com os outros o tempo todo. Não todo mês. Todo dia. É normal qualquer banco não ter fundos no fim do dia para pagar todas as despesas que tem em 24 horas. O fluxo de dinheiro que eles recebem, na forma de quitação de empréstimos ou de dinheiro de correntistas novos, é inconstante. Uma hora, um banco está com dinheiro faltando, e outro, com dinheiro sobrando. E no dia seguinte o cenário se inverte. Tanto a coisa é normal que a taxa de juros que um cobra do outro nessa ciranda tem um nome bem conhecido: DI (Depósito Interfinanceiro): empréstimos entre os caras lá de cima, os bancos. A própria ciranda de empréstimos também tem um nome relativamente popular: overnight, já que os empréstimos acontecem de um dia para o outro, então é como se taxa de juros corresse só ao longo de uma noite. Overnight.

Bom, essa festa do overnight acontece porque a poupança que as instituições financeiras fazem para si mesmas não é em dinheiro vivo, mas em títulos públicos (normal, a sua também é, caso você tenha dinheiro num fundo DI ou de renda fixa). E não vale a pena sair vendendo títulos para pagar as despesas do dia a dia – eles perderiam dinheiro. O que os bancos fazem, então, é pegar emprestado uns com os outros, deixando os títulos como garantia.

No fim do dia, depois que um monte de banco pegou emprestado deixando títulos como garantida, um sistema calcula qual foi a taxa média que um cobrou do outro. O nome de sistema é Selic (Sistema Especial de Liquidação e Custódia; mas não importa o nome: é só um termo tecnicista para o toma-lá-dá-cá).

O outro nome que a Selic tem é menos impenetrável: “juros básicos da economia”. “Básicos” porque trata-se do preço que os bancos pagam pelo dinheiro que vão te emprestar depois, quando você financiar um carro ou ou uma casa. E “básico”, também, porque é o menor juro que pode existir dentro do sistema financeiro. Claro: de outra forma, nem valeria a pena ser dono de banco. O importante aí é que, no fim das contas, quanto maior a Selic, maior o juro que você paga lá na frente.

Mas e quando vem o Presidente da República e diz que vai “baixar a Selic”? Ele está dizendo que vai colocar um revólver na cara do Bradesco e do Itaú e impor as taxas que um cobra do outro? É quase isso. Mas não. O governo não tem poder para impor taxas de juros no grito. Na prática, o Bradesco e o Itaú cobram o que bem entenderem. Se um quiser extorquir 1.000% ao mês do outro, problema deles. Eles que são grandes que se entendam.

Mas na prática a teoria é outra. No mundo real, o governo tem uma arma mais eficiente que qualquer revólver para influenciar nas taxas que um banco cobra do outro: o Banco Central.

O BC é um banco mágico. Ele não precisa ter dinheiro em caixa para conceder emprétimos. Ele cria dinheiro. Se achar que os bancos estão muito pobres, ele vai lá, imprime, e empresta. Fácil. Nisso, a taxa de juros que o Banco Central estiver cobrando vira a referência para todos os bancos. Ninguém vai ser louco de cobrar menos, nem estúpido de cobrar mais, já que não dá para concorrer com um banco que tem caixa mágico, ilimitado.

Mas aí fica a pergunta: por que é que existe uma coisa dessas? Não dava para deixar os bancos se virarem e pronto? Não dá. Por causa do seguinte: quando a economia está mal das pernas, com muita gente desempregada, ninguém tem dinheiro para por no banco. Os bancos ficam com poucos fundos também, e começam a regular demais o dinheiro que têm para bancar os nossos financiamentos. Aí, com menos gente comprando carro, casa, e TV de 64 polegadas em 12 vezes, as montadoras, construtoras e as Casas Bahia ganham menos dinheiro. Começam a demitir, e o começa tudo de novo, num ciclo vicioso rumo ao inferno econômico – é exatamente o que aconteceu na Grande Depressão, nos anos 30, em escala planetária, e que nos deu de presente a Segunda Guerra Mundial.

Os Bancos Centrais de qualquer país, então, são máquinas anti-Depressão. Se começa a faltar dinheiro na ciranda diária de empréstimos entre bancos, é sinal de que a coisa pode estar ficando feia nos andares de baixo da economia. Para cortar o mal pela raiz, o BC vai lá e começa a emprestar no overnight a juros mais baixos. Se não for o bastante, baixa mais ainda. Vai para zero se for necessário – e é justamente o que o Banco Central Europeu tem achado necessário, já que a Selic deles está basicamente em zero há um bom tempo. Nos EUA, é a mesma coisa.

Bom, com os bancos recebdendo dinheiro praticamente de graça, eles podem bancar financiamentos cobrando menos. Aí mais gente vai financiar casas, carros e TVs. O Dr. Casas Bahia vai contratar mais gente, e as coisas começam a voltar aos eixos.

Lindo. Mas por que então não deixara Selic no zero paras sempre? Ou abaixo de zero, para deixar tudo tinindo de uma vez?

Porque existe uma coisa chata que sempre chega para atrapalhar: as leis da física. Se tiver dinheiro demais circulando, a demanda por apartamentos, carros e TVs vai ficar maior do que a capacidade que os próprios empresários têm de montar carros, fabricar TVs e distribuir tudo isso em concessionárias e lojas. Prédio, então, nem se fala. Levantar um já demora. Fazer um novo nos Leblons e Jardins da vida, é quase impossível, já que Deus não tem aberto novos terrenos baldios nesses bairros nas últimas centenas de milhões de anos – na verdade, a deriva continental só tem aberto terrenos novos do outro lado do continente, no Chile, ainda assim, a uma taxa de 2 cm ao ano… Mas vamos voltar ao que interessa.

Existe um limite físico para a produção. Para fazer um carro, você precisa de matérias primas como minério de ferro e gente formada em engenharia. Minério a gente até aranja, ainda que haja um limite obvio para a velocidade da extração. Engenheiro não. Entre a noite de sexo que forma o embrião do futuro engenheiro até o fim da faculdade são 20 e tantos anos. Sem falar que levantar faculdade que preste, ou escolas públicas capazes de alfabetizar o sujeito antes de qualquer outra coisa, também não é simples, você sabe.

Aí a gente chega numa sinuca de bico. Se você, Banco Central, pega e fica injetando dinheiro mágico de graça nos Bradescos e Itaús indefinidamente, uma hora vai esse limite físico para a produção vai chegar. E provavelmente ser ultrapassado. E o que acontece, então, quando o BC atravessa essa linha vermelha? Os preços sobem. Se a quantidade de dinheiro na praça cresce sem parar, e a produção de novos apartamentos, carros e TVs trava, esses produtos entram em leilão. Os empresários vão vender mais caro, já que existe demanda. E você tem inflação. Mal negócio.

O que o Banco Central faz, então, para frear a inflação? Produz mais terrenos no Leblon e engenheiros? Infelizmente não dá. O jeito, então, é sugar dinheiro do mercado. Passar geral o aspirador, de modo a diminuir o total de dinehiro em circulação. Com menos dinheiro girando, os preços têm que baixar. Xô inflação.
E o BC faz isso como? Lá na ciranda do overnight. Em vez de emprestar dinheiro mais barato, ele vira a chave. Dá aquela passada de perna do começo do texto: começa a pagar mais juros do que todo mundo. Nisso, o banco disposto a emprestar vai e empresta para o BC mesmo. Não que o BC precise, lógico. O que ele quer é tirar dinheiro de circulação.

No começo do Plano Real, em 1994, o aspirador de dinheiro teve de funcionar na potência máxima. A inflação tinha sido de 2.708% em 1993. Chegou 1994 e a danada já ameaçava fechar o ano em 8.000% (44% ao mês, já que naquela época ninguém falava em “inflação anual” – era só por mês mesmo, para economizar dígitos).
Já que a ideia era tirar dinheiro de circulação como se não houvesse amanhã, o BC começou pagando juros de cartão de crédito rotativo: 145% ao ano. Isso não está registrado nos anais da nossa economia porque naquela época só divulgavam as taxas mensais de juros. Em 1994 essa média foi de 3,2% ao mês. Ou seja: 145% anuais. Uma pornografia perto dos 11% de agora, e mesmo dos 45% que do último pico histórico, em 1999.

Seja como for, as notas coloridas com bichos estampados que você tem na carteira estão de prova: a coisa deu certo. A drenagem de dinheiro (mais uma dedetização nas finanças do governo, que tinha como tradição bancar obras públicas imprimindo dinheiro) mataram a inflação de quatro dígitos.

Mas inflação é que nem ebola. Quando você acha que matou a bichinha aparece de volta. É que um pouco de inflação é bom para a economia. Se nenhum preço jamais subisse, significaria que nenhum mercado tem para onde crescer. Só faz sentido abrir uma segunda sorveteria no seu bairro se a primeira tem fila. E se a primeira tem fila, provavelmente ela aproveitou para aumentar os preços. Se a sorveteria do seu bairro contar para o índice de inflação do governo, no fim do mês o William Wack vai dizer no Jornal da Globo que a inflação subiu. Mas beleza. Você vai lá, aproveita a oportunidade, e abre a segunda sorveteria para aproveitar a onda, cobrando um pouco menos para arranjar clientes. Depois, com a competição entre vocês, o preço médio do sorvete volta para o chão. Tudo isso enquanto o PIB cresce – já que agora são duas sorveterias, oferecendo o dobro de empregos no ramo sorveteiro.

Inflação zero, ou abaixo de zero, é algo tão ruim quanto inflação descontrolada. No Japão, faz vinte anos que tentam acabar com a deflação, para que alguém se sinta estimulado a abrir a segunda sorveteria do bairro. O governo lá instituiu como meta uma inflação de 2,5%, para ver se o PIB engrena. O BC deles joga dinheiro a rodo no overnight japonês apostando nisso.

Aqui também tem meta de inflação. No nosso caso, um pouco maior, de 4,5%. Mas o problema aqui, você sabe, é o oposto: nossa inflação fica consistentemente acima disso. E tem sido um péssimo negócio, porque não tem tido efeito nenhum no crescimento do PIB. Tem é atrapalhado, já que está carcomendo devagar e sempre o nosso poder de compra. O desafio, agora, é fazer essa trolha voltar para a meta – até por isso os nossos juros agora estão num patamar relativamente alto, 11%, contra 7,25% em 2013.

Só tem um problema. Quando a taxa era de 7,25%, a inflação já estava bem fora da meta. Qualquer presidente de Banco Central do mundo teria começado a subir os juros bem antes, para drenar dinheiro do mercado e segurar a inflação no braço – inclusive Alexandre Tombini, o presidente do nosso. Mas o Poder Executivo vetou. Mandou que os juros continuassem baixos para bombar o PIB.

Não funcionou. E acabamos com o pior dos dois mundos: crescimento zero e inflação desembestada. Se o Banco Central fosse independente, a história poderia ser outra.

Essa independência consiste do seguinte: o Presidente da República nomeia um presidente do BC no meio do mandato. E o cara tem um mandato fixo de quatro anos, até o meio do governo seguinte – é o que acontece nos EUA, na Inglaterra, no Japão. Nesse meio tempo, ele só pode ser demitido por justa causa – lembrando que desobedecer uma ordem como a que Dilma deu quando os juros estavam em 7,25% não, não conta como justa causa. O sujeito tem poder de fato.
Mas é um poder restrito a ditar a taxa básica de juros da economia. Ele manda na Selic, mas não na economia. Quem dita a meta de inflação, que é o que importa, continua sendo o Presidente.

É um sistema que tem funcionado bem nos países que o adotaram. A ideia de Banco Central independente só existe por porque um governo, qualquer governo, de qualquer país, tende a cometer o mesmo erro: jogar mais dinheiro na economia do que deveria, e depois acabar com uma inflação insustentável no colo. Não importa a competência ou o caráter de quem esteja lá em cima. O sujeito sempre vai focar mais no crescimento do PIB do que na ameaça de inflação. É humano. Normal que um político, qualquer político, seja alguém mais afobado que um presidente de Banco Central, um técnico por natureza. Normal que esse político seja alguém mais propenso a fazer besteira, a cair na tentação de imprimir dinheiro demais. Os países que preferem deixar o Banco Central banco-centrar, na dele, fazem isso porque sabem que deixar esse poder na mão do Executivo é amarrar cachorro com linguiça.

Mas no Brasil não. Nem dá para falar nessa ideia – e quem falou acabou escorraçado. Sabe quando o Ahmadinejad disse que não tem gay no Irã? Então. Aqui, pelo jeito, o que não tem é Presidente que não seja gênio da economia. Nossa tradição continua imutável desde Dom Pedro I: o mandatário da nação, seja ele quem for, faz questão de exercer o Poder Moderador, inclusive nas áreas em que não tem capacidade técnica para moderar nada. Lula acertou ao deixar Henrique Meirelles, seu presidente do BC, trabalhar tranquilo. Dilma errou. Aécio é uma incógnita, mas o desprezo que ele mostra pela ideia de tornar o BC independente por lei, como é nos países que adotam o modelo, depõe contra a ideia de mudança que ele promete. Agora é ver se essa conversa evolui. Em 2018.