Alceu Valença: “As fuleiragens estão acabando com a música brasileira”
Em 40 anos de carreira, o cantor, compositor, ex-jornalista e atual cineasta Alceu Valença está certo de que a “fuleiragem music”, apelido que ele deu para a música pop, leva a música brasileira a um caminho complicado. “O Brasil vai muito bem de uma maneira geral, mas a música brasileira atravessa uma fase perigosa”, sentencia em entrevista ao iG .
Há 12 anos, o artista pernambucano investe no filme “A Luneta do Tempo” como roteirista, produtor musical e diretor. “Quando decido fazer alguma coisa, vou fundo, entro de cabeça, trabalho com obstinação”, explica sobre o longa de levada autobiográfica com previsão de lançamento para o segundo semestre. Ainda para o cinema, Alceu prepara um documentário sobre sua carreira “marginal e contestadora” durante os anos 70.
Atualmente, ele fez shows no Sesc Belenzinho, em São Paulo, para gravação do DVD do álbum “Vivo!”, lançado originalmente em 1976. O último show acontece neste sábado (11), às 21h30. “É um álbum metafórico, com forte conteúdo político e um certo apelo contracultural”, define o cantor.
iG: Tocar o disco “Vivo!” na íntegra te traz quais lembranças?
Alceu Valença: Esse disco representa um momento muito especial na minha carreira. É um álbum metafórico, com forte conteúdo político e um certo apelo contracultural. Como disse um jornalista americano, “é um rock que não é rock”. O show original aconteceu logo depois de eu ter participado do festival Abertura, da TV Globo, em 1975, com “Vou Danado Pra Catende”. Fizemos temporadas no Rio de Janeiro e depois viemos para São Paulo.
iG: Você concorda que este é o seu trabalho mais clássico para gravação do DVD?
Alceu Valença: Recentemente, fizemos uma pesquisa em meu site e o show que os internautas elegeram como aquele que eles mais gostariam de rever foi justamente o “Vivo!”. Mas o show em seu formato atual tem outras músicas dos anos 70, de discos como “Molhado de Suor” e “Espelho Cristalino”, além de “Tropicana”, “Anunciação”, “Belle du Jour” e “Táxi Lunar”, que não podiam ficar de fora.
iG: Qual você acha que foi sua maior contribuição artística para o Brasil?
Alceu Valença: Acho que contribuo, sobretudo, através da integridade, da atitude de jamais fazer concessões para o sucesso fácil, para as jogadas meramente comerciais. Minha principal contribuição é fazer sempre uma arte absolutamente verdadeira.
iG: Como aconteceu a ruptura de sua antiga vida de jornalista para a carreira musical?
Alceu Valença: Me formei na Faculdade de Direito do Recife, mas exerci a profissão por pouco tempo. Em seguida, estagiei como jornalista nas Revistas Bloch e na sucursal do Jornal do Brasil, em Recife, pois ainda não havia a exigência do diploma. Queria ser cronista, como Rubem Braga, mas quando ainda estava nas redações surgiu a lei que obrigava o sujeito a ter diploma para escrever em jornais e revistas e eu abandonei o ofício. Pouco depois, comecei a despontar em festivais, fui para o Rio tentar a carreira de artista.
iG: Em 2009, você disse que a “fuleiragem music” estava acabando com a imagem do Brasil no exterior. Você ainda pensa assim?
Alceu Valença: As fuleiragens musicais de uma maneira geral estão acabando com a música brasileira. Não consigo entender, por exemplo, porque é que os cantores brasileiros estão adotando uma embocadura típica do soul, que não tem nada a ver com o canto brasileiro. Nada contra a música americana, que é excepcional, mas acho esquisito o cara cantar se espelhando em uma escola que não tem nada a ver com a nossa realidade. O Brasil vai muito bem de uma maneira geral, mas a música brasileira atravessa uma fase perigosa. Precisamos restabelecer o conceito, a curadoria, o entendimento sobre nossa própria cultura.
iG: Como tem sido sua relação com as gravadoras?
Alceu Valença: Como não sou de fazer concessões ao sucesso fácil, nem sempre foi uma relação simples. Passei por todas as multinacionais e briguei com elas todas as vezes que quiseram interferir na minha arte. Nos anos 1980, queriam que eu gravasse música brega e eu recusei solenemente. Eu dizia para os diretores que eles precisavam se ligar mais no ponto-de-vista do que no ponto-de-venda.
iG: Você tem ídolos?
Alceu Valença: Penso que o verdadeiro artista não deve ter ídolos, porque ele fatalmente vai acabar se espelhando neles e, uma vez que isso aconteça, ele acabará se tornando um imitador, corre o risco de virar carne de segunda. Sempre admirei Luiz Gonzaga e Jackson do Pandeiro, que são grandes mestres da música brasileira, mas nunca os tive como meus ídolos. Quando comecei a carreira, gostava de Elvis Presley, mas ele nunca foi meu ídolo. Recentemente, meu filho Rafael, de 11 anos, começou a gostar dos Beatles e eu passei a escutá-los um pouco mais, são sensacionais. E foi então que eu descobri que muita gente boa da música brasileira plagiou os Beatles. Certa vez fui cantar no Nyon Folk Festival, na Suíça, e um repórter me perguntou o que eu achava de cantar antes de Joan Baez, que na época era mulher de Bob Dylan.
Eu disse: “pergunte a Joan Baez o que ela acha de cantar antes de mim”. Anos depois, no Rock in Rio, me perguntaram o que eu achava de me apresentar na mesma noite de Prince. Eu respondi: “se ele é o Prince, eu sou o príncipe”. Não sou maior nem menor que nenhum deles. Eles são eles, eu sou eu.
iG: Para quando está prevista a estreia de “A Luneta do Tempo”?
Alceu Valença: O filme está praticamente pronto. A ideia é lançar em festivais internacionais de cinema já neste segundo semestre e estrear em circuito comercial no próximo ano.
iG: Há quantos anos você está nesse projeto?
Alceu Valença: Levei doze anos para escrever a história, sou muito detalhista e quis acabar o filme com toda a calma. Rodamos em duas fases, a primeira em dezembro de 2009, em localidades próximas a São Bento do Una, e a segunda, em Nova Jerusalém, em 2011. O filme tem Irandhir Santos e Hermila Guedes, nos papéis principais, além de atores respeitados, como Jones Melo e Helder Vasconcelos. E revela muita gente boa, como o ator, cantor e sanfoneiro Ari de Arimateia, os atores Charles Theony, Ceceu (filho de Alceu), Tito Lívio e Khrystal. Fiz roteiro, direção, montagem, produção musical. Compus mais de 80 músicas para a trilha sonora e atuei.
iG: Como foi a experiência de escrever e dirigir um longa pela primeira vez?
Alceu Valença: Comecei a escrever o texto do filme como um poema de cordel, logo depois da morte de meu pai, como um mergulho na minha identidade, nas minhas raízes. Tempos depois, mostrei o texto ao Waltinho Carvalho, que me disse: “Alceu, isso é cinema!”. E ele me convenceu de que eu deveria fazer um filme. Quando decido fazer alguma coisa, vou fundo, entro de cabeça, trabalho com obstinação. E passei a ter aulas de roteiro, mudei minha maneira de ver cinema. Não sei se farei outro filme, porque cinema dá muito trabalho, tudo leva muito tempo. Mas posso afirmar que, depois desta experiência, o cinema entrou definitivamente na minha vida.
Alceu Valença grava o DVD “Vivo!”
Sesc Belenzinho (R. Padre Adelino, 1000 – São Paulo)
Último show: sábado 11/5, às 21h30
Ingresso: R$ 32 (inteira), R$ 16 (meia) e R$ 8 (trabalhador do comércio e matriculados no Sesc)
Informações: (11) 2076-9700 e pelo site .