Blogs

Fábio Gusmão conta os bastidores da reportagem com a alagoana que inspirou ‘Vitória’, filme com Fernanda Montenegro

Por Lohuama Alves em colaboração para o Cine Ninja, frente do Mídia Ninja 13/03/2025 12h12 - Atualizado em 13/03/2025 12h12
Por Lohuama Alves em colaboração para o Cine Ninja, frente do Mídia Ninja 13/03/2025 12h12 Atualizado em 13/03/2025 12h12
Fábio Gusmão conta os bastidores da reportagem com a alagoana que inspirou ‘Vitória’, filme com Fernanda Montenegro
Alagoana Joana da Paz e Fábio Gusmão - Foto: Arquivo pessoal/ Fábio Gusmão

A coragem de uma mulher comum e o olhar atento de um jornalista deram origem a uma das histórias mais marcantes do jornalismo investigativo brasileiro. Munida apenas de uma câmera, uma alagoana ousou desafiar o tráfico de drogas no Rio de Janeiro, registrando uma realidade que muitos preferiam ignorar.



A reportagem sobre “Dona Vitória”, assinada pelo jornalista Fábio Gusmão, não apenas revelou a gravidade da violência na Ladeira dos Tabajaras, em Copacabana, mas também transformou sua protagonista em símbolo de resistência. A repercussão da história levou à publicação de um livro e, anos depois, inspirou um filme estrelado por Fernanda Montenegro, que agora leva a trajetória de Joana da Paz para as telas.

Em entrevista ao Cine Ninja, Fábio Gusmão compartilhou os bastidores dessa investigação que marcou sua carreira e a história do jornalismo brasileiro.

O começo de tudo

Em março de 2004, o então jovem jornalista buscava uma matéria para a edição de domingo quando soube, por meio de uma fonte na Coordenadoria de Inteligência da Polícia Civil, sobre uma senhora que havia deixado fitas de vídeo na delegacia. O material continha gravações feitas por ela mesma, registrando a movimentação do tráfico de drogas na Ladeira dos Tabajaras, em Copacabana.

Ao assistir às fitas, Fábio percebeu que estava diante da “história da sua vida”. Dona Joana – que mais tarde ficaria conhecida como Dona Vitória – fazia um diário digital, narrando tudo o que via. “Passei a madrugada inteira decupando as fitas. Era impactante. Eu sentia que ali estava o meu prêmio Esso”, relembra.

A maior preocupação: a segurança de Dona Joana
O impacto das imagens era evidente, mas a publicação da matéria exigia cuidados. O apartamento de Dona Joana ficava extremamente próximo a uma boca de fumo, o que representava um risco iminente para sua vida.

“Eu sabia que não poderia publicar nada enquanto ela morasse lá. O risco era grande. Mas ela ficava impaciente, queria que a história fosse contada o quanto antes”, relata Fábio Gusmão.

O impasse durou mais de um ano e meio, período em que o jornalista fortaleceu seu vínculo com a personagem. As visitas frequentes incluíam cafés e longas conversas sobre sua vida. O objetivo era ganhar sua confiança e convencê-la a aceitar uma proteção adequada.

Com a intermediação da segurança pública, Dona Joana finalmente aceitou deixar o local, permitindo que a reportagem fosse publicada com mais segurança.

O nascimento de “Dona Vitória”

A matéria foi publicada em 24 de agosto de 2005 no jornal Extra, ocupando um caderno especial de seis páginas. O nome “Dona Vitória” surgiu de uma necessidade: a personagem precisava de uma identidade simbólica para proteger seu verdadeiro nome.

“A identidade dela estava se perdendo. O Octávio Guedes, editor-chefe, sugeriu ‘Dona Vitória’ porque representava o feito dela. Achei perfeito”, conta o jornalista.

O impacto foi imediato. Outros veículos de comunicação repercutiram a história, e Dona Vitória chegou a dar entrevista ao Fantástico. “Ela me disse que estava com a alma lavada. Foi um momento de reconhecimento que ela tanto desejava”, relembra Gusmão.

Após a repercussão da reportagem, o jornalista sentiu que a história de Dona Vitória precisava ser registrada de forma mais aprofundada. “No dia seguinte à publicação da matéria, eu decidi escrever o livro. Levei um mês para concluí-lo e mais um ano para encontrar uma editora, mas o nome eu já tinha: Dona Vitória da Paz. Só eu sabia que o sobrenome real dela era ‘da Paz’. Então, era o mínimo que eu podia fazer por ela e, ao mesmo tempo, o máximo, pois ela queria ser reconhecida”, contou Gusmão.

Apesar da vontade de Dona Joana de ter sua história contada, a exposição trazia riscos. “Sempre foi muito difícil para ela ficar anônima, mas não podíamos expô-la. A responsabilidade era grande. Não há fama que valha uma vida. Mas, no dia seguinte à reportagem, ela me disse que estava com a ‘alma lavada’”, relembrou.

Com o livro publicado, começou o caminho para a adaptação cinematográfica. “A matéria mudou tudo. Quando você tem uma base ética, como aprendemos na faculdade de Jornalismo, você entende que, ao acessar uma história, mesmo antes de publicá-la, já faz parte dela”, refletiu o jornalista.

O impacto da história também transformou a forma como Gusmão via sua profissão. “Não fui o primeiro a contar a história de uma grande pessoa, mas essa experiência me trouxe uma nova visão sobre o jornalismo na prática. Um cuidado que eu já tinha, mas que, após esse um ano e meio vivendo tudo isso, só se intensificou”, afirmou.

Para ele, a postura ética e a firmeza na condução da investigação foram essenciais. “Ser firme não é ser arrogante, é entender que, quando você se posiciona, ajuda a desempenhar o papel do bom jornalismo. Esse processo me trouxe mais maturidade profissional, e o livro é uma continuidade do meu compromisso com a verdade. Ele não é uma obra de ficção”, destacou.

O jornalista também reforçou que, durante a apuração, não ficou apenas esperando a análise do material enviado por Dona Vitória. “Enquanto a investigação não avançava, eu seguia correndo atrás, fazendo o meu trabalho com outras denúncias e furos. Esse esforço contínuo fez toda a diferença na prática”, concluiu.

Do jornal para as telas: o caminho até o cinema

Com um vasto material em mãos, o jornalista decidiu escrever um livro sobre Dona Vitória, intitulado Dona Vitória da Paz. A publicação abriu caminho para a adaptação cinematográfica da história.

A negociação para o filme começou em 2005, com o diretor e produtor de filmes, Andrucha Waddington, mas a produção só avançou anos depois. Em 2016, Dona Joana participou ativamente das discussões sobre o roteiro. Seu desejo era ser interpretada por Fernanda Montenegro, uma de suas atrizes favoritas, segundo relatos do jornalista.

Com o tempo, Dona Joana passou a viver mais reclusa. A última vez que conversou com o jornalista foi antes da pandemia. Em 2023, no Carnaval, ele recebeu a notícia de seu falecimento. “Me veio uma onda de choro. Era o momento de revelar quem ela realmente era. Então foi quando eu fiz a matéria falando da morte da dona Vitória e o nascimento da dona Joana da Paz, a alagoana que todos passaram a conhecer. A matéria era sobre a vida daquela mulher que sempre viveu muito intensamente apesar de toda a violência sofrida e contei como foi o processo todo e como ela tava até aquele momento”, conta Fábio Gusmão.

Fernanda Montenegro e a emoção de ver a história ganhar vida

Para Gusmão, ver a trajetória de Dona Vitória nas telas, com Fernanda Montenegro no papel principal, é a realização de um sonho.

“Eu queria fazer algo relevante socialmente. Não imaginava que seria dessa forma. E agora, ver a maior atriz brasileira e uma das maiores do mundo interpretando essa grande mulher é emocionante”, afirma.

O jornalista também se viu retratado no filme, interpretado por Alan Rocha. “Ele conseguiu captar minha essência. Assisti e revivi tudo aquilo novamente. Foi muito emocionante. Todo o elenco está de parabéns. Eles foram muito sensíveis e fiéis aos fatos”, diz.

Uma história atemporal

A repercussão do filme tem sido intensa, alcançando até mesmo o público mais jovem.

“Se naquela época já existisse a internet como é hoje, talvez ela mesma tivesse publicado as imagens. Mas não seria com o mesmo cuidado que o jornalismo proporciona. Tudo aconteceu no tempo certo”, reflete Gusmão.


“Cara, eu tô vivendo um sonho da vida real. Eu estou muito feliz. Estou tomado pela gratidão. Foi um período muito difícil. O jornalista, por natureza, tem uma ansiedade. Então, quando passa o tempo e quando compraram os direitos pela primeira vez, que foi o Andrucha, eu fiquei muito feliz. É muito além da vaidade. Eu lembro que quando eu era criança, eu sonhava em

Entrar pra história. Eu queria fazer algo relevante socialmente, queria fazer a diferença e na profissão que eu escolhi, eu queria isso, mas não imaginava como e veio por meio de uma grande história que é tão relevante e tão impactante que virou ficção”, concluiu.

Para ele, Dona Vitória é uma obra necessária. “É um filme sobre coragem, sobre solidão, sobre uma conexão inesperada entre uma mulher e um jornalista. É impossível não se emocionar”.

A história de Dona Vitória não apenas desafiou o tráfico, mas também eternizou uma personagem que, com sua coragem, fez história no Brasil.

Com elenco composto ainda por Linn da Quebrada, Laila Garin e Thawan Lucas, o filme Original Globoplay, com produção da Conspiração, estreia nos cinemas de todo o Brasil em 13 de março, com distribuição da Sony Pictures.

Lôh Alves

Uma alagoana cheia de virtudes e vicissitudes; comunicadora e amante das letras. Acredita que jornalismo é mais que vocação, é paixão. Desde 2014 desempenha várias funções no ambiente do ciberespaço para se consolidar e assumir novas tarefas na comunicação.  

É contando e ouvindo histórias que as memórias culturais e afetivas são resgatadas, fundamentais para descobrir quem somos e como lidamos com os outros. Neste blog, vocês poderão ter essa experiência.

Ver todos os posts