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Você também percebeu isso na Família Adams?
A família Adams voltou para os holofotes, né?
Eu acho incrível como essa franquia continua voltando pra o palco do mainstream até hoje. É um sucesso intergeracional indiscutível, e o é em diversas mídias.
A obra do momento é a série Wandinha, da Netflix, mas eu vou ter que confessar pra vocês: eu não assisti.
E dessa vez não foi ranzinzice - pelo menos não pura. Eu juro que tentei. Até ultrapassei os 15 minutos. Sabe?
Se não, vou te explicar: quando se está estudando storytelling, uma hora ou outra você vai esbarrar com a "regra" das 15 páginas. Se nas 15 primeiras páginas - o que equivaleria aos 15 primeiros minutos no audiovisual - você não cativar seu espectador, é bem possível que o perca.
Eu não sigo isso à risca, mas tenho tanta coisa na lista pra ver e ler, que sempre me flagro agindo assim, como esse espectador exigente e apressado.
Com Wandinha, eu juro que tentei. Assisti os dois primeiros episódios, mas sinceramente, não aguentei. A história me pareceu muito qualquer coisa, bem previsível, comunzinha e tudo. No primeiro episódio saí dizendo "vai acontecer assim, assim e assim", e acertei quase tudo. Mas o que me irritou de verdade foi o texto. A protagonista parece que não dizia nada que não fosse uma autoexplicação. "É porque eu sou sombria", "É porque eu não tenho sentimento", "É porque eu não tenho emoções", "Sabe o que eu não tenho? Sentimentos", "Sabe o que eu não sinto? Emoções", "É, eu sou muito sombria" e aí eu tirei.
O que era pra ser a Wandinha Adams, se tornou só uma adolescente normal. Se você balançar um arbusto no Bosque caem quinze meninas daquela, usando uma camisa do Arctic Monkeys e tomando "Cicinho".
Me disseram até que a coisa vai melhorando, mas eu não tive paciência.
"Tá, Luciano, e você tá escrevendo isso por que?"
Porque minha sobrinha adorou. Não só adorou, como ficou obcecada pela mitologia dos Adams. Saiu assistindo tudo que podia assistir sobre eles, e nessa empreitada, acabou me levando junto. Por ela me pedir, assisti uma ou outra coisa de carona, e foi assim que me deparei com "Família Adams 2" (1993), de Barry Sonnenfeld.
Eu realmente não esperava por esse filme.
Vocês conhecem o canal do YouTube"Quadrinhos na Sarjeta"? {Eu adoro, aliás, e o tenho como inspiração pra boa parte do que faço aqui.} Nesse canal tem um vídeo falando sobre a construção da Família Adams ao longo das décadas, de 1938 até hoje, e no vídeo, Alexandre Linck nos mostra como esses personagens foram se tornando o estereótipo que o estadunidense tinha de uma família latina.
Aquela família enorme - que nesse contexto já remete a um debate de classe social - parecia aquela coisa esquisita porque era assim que o americano protestante via uma família latina católica. Um elemento que reforça isso é o nome do pai, "Gomez", que não foi dado por acaso. E toda aquela exaltação da morte e do sofrimento, você já conhece. Pra os protestantes é estranho que em vários lugares da casa de pessoas católicas exista uma pintura ou escultura do deus cristão espancado, flagelado, torturado, em profunda angústia e prestes a morrer de forma violentíssima. E o sofrimento não é só para o deus, mas o fiel também precisa sofrer na terra para seu próprio crescimento espiritual.
Isso foi só um resumo, e eu recomendo que assista ao vídeo, que lá o Linck explica melhor e mais detalhadamente.
O que importa por enquanto é ter isso em mente: a família Adams é a representação de uma família latina.
Foi aí que o filme em questão me deixou surpreso. Ele parece uma mini reparação histórica.
Nós conhecemos a história e a contemporaneidade dos E.U.A., certo? Foi um país fundado sobre o genocídio - como todas as colônias deste continente - onde até hoje existe uma violência etnica horrenda, sendo ela o racismo ou a xenofobia - fora as outras discriminações [e ainda bem que no Brasil não tem, né? Kk].
Se você e eu sabemos, imagino que o roteiro e a direção do filme também.
O longa nos mostra basicamente dois núcleos narrativos, o das crianças e o dos adultos.
Entre os adultos, o protagonismo fica para o Tio Chico, que encontra alguém por quem se apaixona e decide, junto com ela, que irão se casar. Acontece que a noiva é um estereótipo total da branquitude. Imagine, no nosso contexto, uma senhora loira, que tem duas filhas loiras, mora em condomínio fechado e tem um HB20 ou um Nissan March branco. É por essa figura que Tio Chico se apaixona.
Não demora muito pra que nós - e os personagens do filme - percebamos que ela não o ama. Casa pelo dinheiro, usa o noivo como escada e etc. É importante notar que, do ponto de vista do Gomez, ela não usa seu irmão como um meio para enriquecer, e sim como objeto sexual. Existem essas duas possibilidades, e nenhuma delas é com a moça enxergando Tio Chico como um igual, como uma pessoa. É sempre um objeto, utilizável e descartável. Ela, inclusive, tenta matá-lo. Não preciso dizer que ela é a vilã da história, né? Você também já imaginou que a "batalha final" é da família latina contra a branquitude que os usa e quer matá-los, não foi?
No núcleo das crianças é que as coisas ficam ainda mais escancaradas.
Elas vão pra um acampamento, tipo colônia de férias, e os "vilões" são educadores brancos, supostamente bondosos, mas que tentam modificar seus costumes e ensiná-los a história do seu ponto de vista. Só que as crianças aqui são Wandinha e Feioso, então você também já imagina. Eles são meio que forçados a interpretarem uma peça sobre a colonização, e seu triunfo sobre os vilões é tomar conta da história, mudar o enredo e fazer com que os indígenas tenham sua vingança contra o colonizador.
Sei que, pra alguns, isso aqui pode parecer uma grande de uma viagem, mas assista ao filme com atenção. Está tudo às claras.
E para além disso, é um longa super divertido. Me peguei rindo muito em vários momentos. É uma história simples, descomplicada, mas com personagens que viemos aprendendo a amar durante muitos anos. Uma distração fácil, mas com camadas interessantes de serem notadas, e como diz o supracitado Linck, mesmo nessas distrações fáceis, é necessário que nós qualifiquemos o debate.
No mais, agradeçam à minha sobrinha, que me fez ver tudo que ela encontrou da franquia.
Luciano Felizardo
Luciano é escritor e sua cabeça gira em torno disso. Nesse espaço, vai falar sobre obras de arte (filmes, livros, músicas, etc) e as reflexões que teve a partir delas. Além de, vez e outra, tentar simplificar e trazer para o nosso cotidiano alguns conceitos de filosofia, política e psicologia - área na qual vem se graduando pela Ufal.
Suas obras podem ser adquiridas no site da Editora Ipê Amarelo ou entrando em contato com ele através do Instagram (@vezeoutrapoesia).