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Wendell & Wild e a exaltação acrítica do passado

Por Luciano Felizardo 01/12/2022 19h07
Por Luciano Felizardo 01/12/2022 19h07
Wendell & Wild e a exaltação acrítica do passado
Poster de Wendell & Wild, filme de Henry Selick e Jordan Peele - Foto: Imagem do Pinterest

No fim de outubro a Netflix disponibilizou o longa animado Wendell & Wild, e quando eu vi que o roteiro era de Jordan Peele e a direção do Henry Selick, fiquei ansiosíssimx pra assistir.

Jordan Peele é o autor de um dos meus filmes preferidos - Us (2019) - e muita gente da minha idade cresceu fascinado por Coraline e o Mundo Secreto (2009), que foi dirigido pelo Selick.

Como Coraline, Wendell & Wild também é um stop motion baseado num livro de ficção, e como Coraline, os direitos da adaptação também foram adquiridos antes mesmo do lançamento do livro.

Mas acho que as semelhanças param por aí.

Minha primeira impressão não foi das melhores. Demorei a me adaptar ao visual. O designe dos personagens é bem mais caricato que em Coraline e a animação em si, a movimentação dos elementos em tela, parecia carregada de um delay eterno.

Embora tenha me incomodado, isso não foi um empecilho dos maiores. Depois de uns 20 minutos de filme meus olhos se habituaram.

Só que aí é que tá.

Não foi só ao visual que precisei me acostumar. O ritmo da narrativa como um todo exige uma certa paciência. Até você querer saber o que vai acontecer, já foi metade do filme.

E não também que isso seja um defeito ou uma qualidade por si só, mas é difícil achar paciência pra ser fisgado por um filme dentro de um app como a Netflix, onde você tem literalmente milhares de opções.

Porém, ultrapassada essa barreira, o filme apresenta uma historinha legal. Nada demais também.

Os personagens ao redor da protagonista são cativantes - os pais, o Raul, a Irmã Helley, o Manberg - mesmo que ela não seja tanto assim, e depois que a confusão se apresentou armada, eu quis saber como seria concluída.

Mas o que me deixou pensando depois do filme ter terminado é em como, em maior ou menor grau, nós estamos passando por aquele mesmo problema.

Veja só:

No filme, alguns comerciantes locais sofrem um acidente e isso abala de certa forma a economia do lugar, e se aproveitando da fragilidade consequente, grandes empresários destroem o que podem para, a partir das cinzas, sugerirem uma reconstrução. Causam o problema e oferecem a ajuda, visando alcançar ali um grande empreendimento.

Acontece que as pessoas que restaram na cidade não estão de acordo, e como o aval deles é necessário, os empresários se vêem impedidos de executar plenamente seu plano. Isso os frusta. Eles parecem ter se deparado com um verdadeiro impasse. Até que o clérigo local - que eles subornavam - sugere trazer de volta o passado.

Tá, tá. Talvez eu já esteja me referindo à metáfora e não à narrativa, à conotação e não à denotação, mas é bem isso que acontece mesmo.

Dois demônios são trazidos ao mundo dos humanos, o Wendell e o Wild - que, aliás, são irritantes e desinteressantes resultando num misto insuportável - e esses dois têm a capacidade de trazer os mortos de volta a vida.

É a solução perfeita pra o casal de empresários. Se aquele modelo de negócios é inconcebível no presente, eles vão trazer de volta as ideias do passado.

Eu não preciso ir longe demais. Você sabe o quanto o mercado da nostalgia tem sido lucrativo pras grandes empresas e como esse ideal reacionário tem alimentado delírios fascistóides.

E o que acontece é o mais óbvio: esse passado é insustentável.

Os corpos mortos ganham vida, mas não se regeneram. Eles voltam a viver, mas no estado decrépito e podre em que se encontram, porque obviamente o tempo que passou não volta, e obviamente, essa nova vida não dura muito.

É nesse arco que Kat, a protagonista, percebe que até mesmo o que foi bom no passado não se sustentaria no agora. [Alerta de Spoiler: ] Ela sentia a falta dos pais e ficou felicíssima ao reencontrá-los, mas precisava fechar esse ciclo e seguir em frente sem eles.

E por falar nisso, essa questão da paternidade/maternidade, parece ser um ponto importante no roteiro.

O casal de empresários, por exemplo, percebe que a filha não os apoia naquela empreitada - como é de se esperar de qualquer pessoa minimamente sensata - e ao se depararem com essa discordância, nem sequer cogitam a possibilidade do erro estar em seus planos, alegam de imediato que a menina sofreu lavagem cerebral do grupo que pensa diferente deles. Isso lhe lembra alguma coisa?

Além desse caso, tem o da dupla que dá nome ao filme. Eles saem de casa quase que fugidos de um pai que os vê como propriedade e os trata como se fossem seus servos eternos [e nós descobrimos depois que todos os outros filhos dele fugiram desse mesmo ambiente por esse mesmo motivo].

Um ponto em que eu acho que o filme acerta muito é na forma que aborda as pessoas "diferentes". Discutir o que é ser diferente e o que não é pode ser tema de outro artigo. É uma conversa extensa. Mas nós sabemos o que se entende por normalidade na nossa sociedade.

A animação, entretanto, insere corpos historicamente anormalizados sem que eles causem grande estranhamento. Raul, por exemplo, é um menino trans, e fica claro como algumas pessoas ali ainda não assimilaram isso, mas a narrativa em si não para pra ter essa conversa conosco. Temos um personagem trans e é isso. Pronto. O mesmo acontece com Manberg, que é cadeirante - e sobre ele eu não vou me alongar porque estou trabalhando num artigo que é especificamente sobre capacitismo, mas sua inserção na história segue a mesma lógica.

No fim, se você for assistir esperando uma obra magnífica - porque é o que se espera quando aparece o nome desses criadores - vai ser uma decepção, mas se quiser assistir despretensiosamente, é um filminho bem divertido.

Luciano Felizardo

Luciano é escritor e sua cabeça gira em torno disso. Nesse espaço, vai falar sobre obras de arte (filmes, livros, músicas, etc) e as reflexões que teve a partir delas. Além de, vez e outra, tentar simplificar e trazer para o nosso cotidiano alguns conceitos de filosofia, política e psicologia - área na qual vem se graduando pela Ufal.
Suas obras podem ser adquiridas no site da Editora Ipê Amarelo ou entrando em contato com ele através do Instagram (@vezeoutrapoesia).

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